Comemorou-se no dia 25, sem brilho algum, o Dia do Escritor. O personagem já foi em prosa e verso louvado ... pelos próprios escritores, é claro. Hoje, só chama a atenção de alguns gatos pingados. Pois o escritor, antes tido como uma espécie de farol da humanidade, vendeu-se, prostituiu-se, vulgarizou-se.
Homero, se é que existiu, jamais deve ter-se preocupado se teria ou não leitores. Muito menos os hagiógrafos. Escreviam para comunicar algo ao ecúmeno, e reduzido era o ecúmeno naqueles dias. É de supor-se que Cervantes ou Swift jamais tenham se preocupado com direitos autorais. O Quixote foi concebido – e talvez escrito - na prisão.
Com o correr do tempo, escrever virou profissão. Tanto Dostoievski como Balzac escreveram para pagar dívidas de jogo. De lá para cá, escrever para enriquecer virou sonho de muito escritor. E para vender bem, é conveniente seguir o gosto do grande público. Como este gosto hoje é dos mais vulgares, a literatura seguiu este rumo. Não temos mais escritores levando aos leitores, contra ventos e marés, sua visão de mundo. Hoje os escritores tentam adivinhar a visão de mundo do público, para bajulá-lo. Daí os códigos da Vinci e harrys potters da vida.
Se antes os leitores procuravam na literatura uma tentativa de explicação da alma humana e seus mistérios, hoje buscam evasão e auto-ajuda. O escritor virou uma espécie de palhaço, muito bem pago para divertir os frequentadores do circo.
Livro é um objeto relativamente barato. Para ganhar muito é preciso vender muito. Não vivemos mais nos dias de Beccadelli Panormita, que vendeu uma porção de terra para adquirir, por 120 escudos de ouro, as obras de Tito Lívio. Nem na época da condessa d’Anjou, que comprou as Homilias de Aimon d’Halberstadt por duzentas ovelhas, três moios de trigo e boa quantidade de peles de marta. A propósito, estas informações eu as colho em Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins, um dos bons escritores nacionais, cujas obras hoje só encontramos em sebos.
Já que falei no autor... Osman Lins é dos tempos – em verdade não muito distantes – em que havia uma certa sacralidade no escrever. “A condição do escritor será a de um perpétuo combatente, a de um homem sempre em luta consigo próprio e com um mundo que jamais o aceita integralmente; que nunca poderá aceitá-lo”.
Dichosos tiempos aquellos... em que literatura era ofício nobre. Ernesto Sábato é outro destes românticos, ao predicar a “clericatura” do escritor. O artista assume o papel de mártir. É o homem que, por sua revolta, continua não contaminado pelo meio ambiente. Interrogado se considera efetivamente a revolta como condição essencial para o criador de ficções:
— Evidentemente, se é grande, se não pratica essa fabricação de best-sellers de temporada, que hoje substitui em boa parte aquela missão sagrada que Jaspers menciona nos trágicos gregos, é um rebelde, um delegado das Fúrias, mesmo sem sabê-lo e, é claro, sem querê-lo.
Sábato vê a literatura como um ato sagrado. Perguntei-lhe certa vez se, nesta época publicitária, um livro poderia ainda preservar esta sacralidade.
— É difícil, com efeito, mas é possível. As religiões são por sua natureza mesma sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas. Assim, surge certo tipo de religioso, talvez o mais profundo, que é, que tem de ser, anticlerical. As igrejas materializam a religião e a pervertem. Os místicos têm de voltar às fontes. O mesmo acontece com a literatura.
Os escritores – pelo menos os profundos – já foram guias de gerações. Eram poucos. Sempre houve uma subliteratura, mas seus autores antes não punham a cabeça para fora. Hoje, você se você joga uma pedra em um cachorro e erra, tem boas chances de acertar um escritor.
Eles são legião e surgem às fornadas. São publicados em milhares de exemplares e lidos por ninguém. Escritor que se preze, hoje, tem 30 ou 40 livros publicados. Difícil é lembrar algum destes títulos. Não passa dia sem que leiamos nalgum jornal: morreu o escritor Fulano de Tal. E vemos um nome do qual jamais ouvimos falar.
Adeus dias de Somerset Maugham, Aldous Huxley, Herman Hesse, Thomas Mann, Lawrence Durrel, Witold Gombrowicz, Jerzy Kosinski, Albert Camus, Margaret Yourcenar, Gore Vidal, Ernesto Sábato. Até mesmo Borges parece ter desaparecido das livrarias.
No Brasil, os jovens escritores brotam como cogumelos após a chuva. São centenas, senão milhares. Se lessem uns aos outros, esgotariam gordas edições. De um lado, o custo das edições barateou. De outro, muitos são financiados pelas leis Rouanets da vida. Ou indicados como leitura obrigatória nos colégios e universidades. Este é o mais sórdido dos espécimes. Claro que não será indicado se disser uma só palavrinha contra o governo, se desobedecer ao politicamente correto. É prostituta desde o berço.
Há ainda os premiados em concursos com cartas marcadas. Já há quem faça profissão da vidinha de palestras aqui e ali, feiras do livro, festivais de literatura. São sempre os mesmos. Em um panorama onde um dia tivemos escritores de vulto – Osman Lins, Pedro Nava, Campos de Carvalho, Nelson Rodrigues, Aníbal Machado – hoje vemos uma planura onde nenhuma cabeça desponta.
Despontam, isto sim, filhotes de pavões, sempre dispostos a dar entrevistas sobre “meu fazer literário”. Já ouvi – juro que ouvi – um desses escrevinhadores falar sobre “meu universo ficcional”. Tinha 60 anos e havia publicado seu primeiro livro de contos. A profissão se tornou tão banal no Brasil que já temos nobelizáveis – com mais de 60 livros publicados – estendendo o chapéu ao contribuinte para continuar tomando seus vinhos.
É o caso de relembrarmos aquela antiga piadinha: uma poetisa palestrava quando um dos ouvintes a interpelou:
- Poeta, li um de seus livros.
- Ah! Foste tu?
Quem viu isto muito bem foi Fernando Pessoa: "A mesquinhez, a estreiteza imaginativa são os vícios definidores da nossa época. Somos incapazes de escrever, ou de querer escrever, ou de saber ler sem escrever, epopéias. Em compensação, escrevemos romances. O romance é o conto de fadas de quem não tem imaginação".
Os contos de fada de quem não tem imaginação aí estão, atulhando as vitrines de livraria e páginas de jornais. Aquele antigo escritor, que cultuávamos como um ser dotado de uma visão privilegiada do mundo – e que nos servia como guia no emaranhado da vida – parece ter desaparecido. Se quisermos ler estes mestres, temos de voltar aos antigos.
A data de hoje é vazia. Celebra um personagem que um dia teve sua importância e hoje virou prostituta. Vende sua alma a quem melhor paga.
26 de julho de 2013
janer cristaldo
Homero, se é que existiu, jamais deve ter-se preocupado se teria ou não leitores. Muito menos os hagiógrafos. Escreviam para comunicar algo ao ecúmeno, e reduzido era o ecúmeno naqueles dias. É de supor-se que Cervantes ou Swift jamais tenham se preocupado com direitos autorais. O Quixote foi concebido – e talvez escrito - na prisão.
Com o correr do tempo, escrever virou profissão. Tanto Dostoievski como Balzac escreveram para pagar dívidas de jogo. De lá para cá, escrever para enriquecer virou sonho de muito escritor. E para vender bem, é conveniente seguir o gosto do grande público. Como este gosto hoje é dos mais vulgares, a literatura seguiu este rumo. Não temos mais escritores levando aos leitores, contra ventos e marés, sua visão de mundo. Hoje os escritores tentam adivinhar a visão de mundo do público, para bajulá-lo. Daí os códigos da Vinci e harrys potters da vida.
Se antes os leitores procuravam na literatura uma tentativa de explicação da alma humana e seus mistérios, hoje buscam evasão e auto-ajuda. O escritor virou uma espécie de palhaço, muito bem pago para divertir os frequentadores do circo.
Livro é um objeto relativamente barato. Para ganhar muito é preciso vender muito. Não vivemos mais nos dias de Beccadelli Panormita, que vendeu uma porção de terra para adquirir, por 120 escudos de ouro, as obras de Tito Lívio. Nem na época da condessa d’Anjou, que comprou as Homilias de Aimon d’Halberstadt por duzentas ovelhas, três moios de trigo e boa quantidade de peles de marta. A propósito, estas informações eu as colho em Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins, um dos bons escritores nacionais, cujas obras hoje só encontramos em sebos.
Já que falei no autor... Osman Lins é dos tempos – em verdade não muito distantes – em que havia uma certa sacralidade no escrever. “A condição do escritor será a de um perpétuo combatente, a de um homem sempre em luta consigo próprio e com um mundo que jamais o aceita integralmente; que nunca poderá aceitá-lo”.
Dichosos tiempos aquellos... em que literatura era ofício nobre. Ernesto Sábato é outro destes românticos, ao predicar a “clericatura” do escritor. O artista assume o papel de mártir. É o homem que, por sua revolta, continua não contaminado pelo meio ambiente. Interrogado se considera efetivamente a revolta como condição essencial para o criador de ficções:
— Evidentemente, se é grande, se não pratica essa fabricação de best-sellers de temporada, que hoje substitui em boa parte aquela missão sagrada que Jaspers menciona nos trágicos gregos, é um rebelde, um delegado das Fúrias, mesmo sem sabê-lo e, é claro, sem querê-lo.
Sábato vê a literatura como um ato sagrado. Perguntei-lhe certa vez se, nesta época publicitária, um livro poderia ainda preservar esta sacralidade.
— É difícil, com efeito, mas é possível. As religiões são por sua natureza mesma sagradas, mas devem lutar contra a dessacralização contínua que promovem as igrejas. Assim, surge certo tipo de religioso, talvez o mais profundo, que é, que tem de ser, anticlerical. As igrejas materializam a religião e a pervertem. Os místicos têm de voltar às fontes. O mesmo acontece com a literatura.
Os escritores – pelo menos os profundos – já foram guias de gerações. Eram poucos. Sempre houve uma subliteratura, mas seus autores antes não punham a cabeça para fora. Hoje, você se você joga uma pedra em um cachorro e erra, tem boas chances de acertar um escritor.
Eles são legião e surgem às fornadas. São publicados em milhares de exemplares e lidos por ninguém. Escritor que se preze, hoje, tem 30 ou 40 livros publicados. Difícil é lembrar algum destes títulos. Não passa dia sem que leiamos nalgum jornal: morreu o escritor Fulano de Tal. E vemos um nome do qual jamais ouvimos falar.
Adeus dias de Somerset Maugham, Aldous Huxley, Herman Hesse, Thomas Mann, Lawrence Durrel, Witold Gombrowicz, Jerzy Kosinski, Albert Camus, Margaret Yourcenar, Gore Vidal, Ernesto Sábato. Até mesmo Borges parece ter desaparecido das livrarias.
No Brasil, os jovens escritores brotam como cogumelos após a chuva. São centenas, senão milhares. Se lessem uns aos outros, esgotariam gordas edições. De um lado, o custo das edições barateou. De outro, muitos são financiados pelas leis Rouanets da vida. Ou indicados como leitura obrigatória nos colégios e universidades. Este é o mais sórdido dos espécimes. Claro que não será indicado se disser uma só palavrinha contra o governo, se desobedecer ao politicamente correto. É prostituta desde o berço.
Há ainda os premiados em concursos com cartas marcadas. Já há quem faça profissão da vidinha de palestras aqui e ali, feiras do livro, festivais de literatura. São sempre os mesmos. Em um panorama onde um dia tivemos escritores de vulto – Osman Lins, Pedro Nava, Campos de Carvalho, Nelson Rodrigues, Aníbal Machado – hoje vemos uma planura onde nenhuma cabeça desponta.
Despontam, isto sim, filhotes de pavões, sempre dispostos a dar entrevistas sobre “meu fazer literário”. Já ouvi – juro que ouvi – um desses escrevinhadores falar sobre “meu universo ficcional”. Tinha 60 anos e havia publicado seu primeiro livro de contos. A profissão se tornou tão banal no Brasil que já temos nobelizáveis – com mais de 60 livros publicados – estendendo o chapéu ao contribuinte para continuar tomando seus vinhos.
É o caso de relembrarmos aquela antiga piadinha: uma poetisa palestrava quando um dos ouvintes a interpelou:
- Poeta, li um de seus livros.
- Ah! Foste tu?
Quem viu isto muito bem foi Fernando Pessoa: "A mesquinhez, a estreiteza imaginativa são os vícios definidores da nossa época. Somos incapazes de escrever, ou de querer escrever, ou de saber ler sem escrever, epopéias. Em compensação, escrevemos romances. O romance é o conto de fadas de quem não tem imaginação".
Os contos de fada de quem não tem imaginação aí estão, atulhando as vitrines de livraria e páginas de jornais. Aquele antigo escritor, que cultuávamos como um ser dotado de uma visão privilegiada do mundo – e que nos servia como guia no emaranhado da vida – parece ter desaparecido. Se quisermos ler estes mestres, temos de voltar aos antigos.
A data de hoje é vazia. Celebra um personagem que um dia teve sua importância e hoje virou prostituta. Vende sua alma a quem melhor paga.
26 de julho de 2013
janer cristaldo
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