Nunca usei drogas. Sou talvez um dos raros universitários de minha geração que não sabe fazer diferença entre alfafa e maconha. Verdade que, naqueles dias, havia gente consumindo alfafa por maconha sem se dar conta. Afinal, pouca é a diferença entre Cannabis sativa e Medicago sativa.
Quando escrevia na finada Folha da Manhã, em Porto Alegre, caiu-me em mãos a notícia de um traficante que operava numa favela chamada Vila do Cai n’Água. Preso pela polícia, alegou que nada estava vendendo de ilegal. Vendia alfafa batizada com esterco de cavalo. E o pessoal não reclama? – perguntou o policial. “Eles acham que o cheiro é muito forte. Digo que é maconha do Nordeste. Da boa”.
Durante semanas me diverti com os “magrinhos”, como chamávamos lá no Sul os filhinhos de papai que se pretendiam contestadores do “sistema”. Fui brindado com o título de superego da província. Nunca tive curiosidade alguma pelas drogas. Para começar, seus usuários eram gregários e viviam falando com o próprio umbigo. Pessoas de pouca ou nenhuma leitura, nada me impelia a confraternizar com eles. Jamais tive, em meu círculo de amigos, mascadores de alfafa ou maconha.
Para não dizer que jamais fumei maconha, nos distantes anos 70 dei uma ou duas tragadas num baseado. Estava em Estocolmo, em um apartamento de universitários, com 19 brasileiros e três suequinhas. Me passaram o bagulho. Para não bancar o estraga-prazeres, dei uma pitada. Uma das suecas me perguntou:
- Vocês brasileiros só sabem fazer isso?
- Isso o quê?
- Puxar fumo e ficar olhando o próprio umbigo?
Brasileiros, até pode ser, respondi. Mas expliquei que não era muito brasileiro. E convidei as três para meu apartamento, onde tomamos vinho a noite toda até o amanhecer. Noite e amanhecer é modo de dizer. Era verão e as noites eram de uma luz irreal, emanada por um sol paranóico que teimava em não deitar-se.
Sem jamais ter consumido drogas, faço a defesa de sua legalização. Verdade que certas drogas, como o crack e mais recentemente o tal de oxi, devem permanecer na ilegalidade, em função de sua letalidade. Mas há muito veneno em farmácia cuja compra não é proibida. Nossas leis tampouco proíbem que alguém se suicide.
Dito isto, nuestros vecinos de la Banda Oriental estão prestes a seguir o exemplo do Brasil, isto é, legalizar a maconha. Ora, direis, no Brasil o uso de drogas é ilegal. Teoricamente, até pode ser. Na prática, no dia em que um drogado for preso e permanecer em cana, o fato até merece manchete. Pois há mais de década não se prende mais alguém pelo uso de drogas.
Alguma exceção, cá e lá, até pode ocorrer. Mas, de modo geral, o consumo é livre. Aqui em São Paulo, a quinze minutos a pé de onde moro, os nóias fumam crack a céu aberto, sob o olhar complacente da polícia. O campus da PUC, em Perdizes, é um dos mais reputados fumódromos da Paulicéia. E só poderia ser assim. Em um país em que 250 mil condenados por crimes estão soltos nas ruas por falta de vagas carcerárias, onde colocar mais alguns milhões de consumidores de drogas?
O projeto de legalização da maconha no Uruguai, que recebeu ontem a aprovação na Câmara dos Deputados, deixa o país na "vanguarda" da questão da maconha, segundo seu presidente José Mujica, promotor da iniciativa. "Isto tem o caráter de uma batalha em todos os terrenos (...) Em nenhuma parte do mundo a repressão deu resultado", disse Mujica em seu programa de rádio. Ao mesmo tempo, caiu na contradição de todos os países que liberaram as drogas, ao criticar o tráfico, que gera "lucros capaz de corromper tudo".
Tanto a repressão não deu resultado, que hoje no Ocidente é mais fácil encontrar maconha que Melhoral. Desconheço país na Europa que mande, hoje, para a prisão, um usuário de drogas. Nos 70, quando estava na Suécia, havia bares especiais para menores, para o consumo de drogas, onde maior de idade não podia entrar. Quando vivia em Madri, nos 80, a maconha era oferecida livremente na Gran Via. Hoje, até o tímido Portugal liberou geral. O consumo e a posse de drogas para uso particular, sem distinçao entre drogas leves e pesadas, deixaram de ser considerados crimes em Portugal ... há treze anos.
Assim como saudou o papa por aceitar o homossexualismo – quando em verdade o papa não aceitou coisa nenhuma – a imprensa agora diz que o Uruguai tomou uma iniciativa pioneira no continente. Só se for para inglês ver.
Sempre tive simpatias pela Banda Oriental. Para começar, nasci quase lá. Nos anos 60, com a censura no Brasil, era onde íamos buscar filmes e livros aqui proibidos. Privilegiados eram os santanenses. Se quisessem ver O Último Tango em Paris, bastava atravessar a Sarandi. O resto do país teve de esperar não poucos anos após o lançamento do filme na França. Parece que os militares consideraram um atentado aos bons costumes ver a manteiga como artigo de cama e mesa.
Chiquitito, pero libre. Em Madri, tive como colega uma montevideana, de quem ouvi certo dia a expressão “al norte del Uruguay”. Não resisti: “Es decir que Ustedes se dán al lujo de tener un norte?” Ela ficou perplexa com meu comentário.
"Nós queremos parar com esta coisa na fronteira, onde tem início o vício pelas drogas – prossegue Mujica -. Não é fácil porque não temos uma receita. Temos consciência de que estamos fazendo uma experiência de vanguarda no mundo inteiro". Pelo jeito, acreditou no que a imprensa diz.
O projeto prevê que, após serem registrados, os usuários possam comprar até 40 gramas de maconha por mês em farmácias, além de permitir o autocultivo da erva. O texto da lei agora segue para votação no Senado. Caso seja aprovado – e isto sim é algo novo - o Uruguai se tornará o primeiro país do mundo em que a produção, a distribuição e a venda de maconha a consumidores adultos serão reguladas pelo Estado. Estrangeiros não-residentes no país não poderão comprar nem cultivar a canabis. Pergunta que se impõe: quem vai fiscalizar?
Rivera vai viver dias interessantes – poderia pensar algum desavisado. Não bastasse atrair milhares de gaúchos por ser zona franca, agora atrairá milhares de outros, em busca de outras culturas que não a livresca ou a cinematográfica. A bem da verdade, com a nonchalance que se fuma maconha no Brasil, não vale a pena deslocar-se até lá por um baseado.
Seja como for, o gesto dos uruguaios é um golpe na hipocrisia dos países onde a droga é proibida por lei mas permitida pelo Estado.
02 de agosto de 2013
janer cristaldo
Quando escrevia na finada Folha da Manhã, em Porto Alegre, caiu-me em mãos a notícia de um traficante que operava numa favela chamada Vila do Cai n’Água. Preso pela polícia, alegou que nada estava vendendo de ilegal. Vendia alfafa batizada com esterco de cavalo. E o pessoal não reclama? – perguntou o policial. “Eles acham que o cheiro é muito forte. Digo que é maconha do Nordeste. Da boa”.
Durante semanas me diverti com os “magrinhos”, como chamávamos lá no Sul os filhinhos de papai que se pretendiam contestadores do “sistema”. Fui brindado com o título de superego da província. Nunca tive curiosidade alguma pelas drogas. Para começar, seus usuários eram gregários e viviam falando com o próprio umbigo. Pessoas de pouca ou nenhuma leitura, nada me impelia a confraternizar com eles. Jamais tive, em meu círculo de amigos, mascadores de alfafa ou maconha.
Para não dizer que jamais fumei maconha, nos distantes anos 70 dei uma ou duas tragadas num baseado. Estava em Estocolmo, em um apartamento de universitários, com 19 brasileiros e três suequinhas. Me passaram o bagulho. Para não bancar o estraga-prazeres, dei uma pitada. Uma das suecas me perguntou:
- Vocês brasileiros só sabem fazer isso?
- Isso o quê?
- Puxar fumo e ficar olhando o próprio umbigo?
Brasileiros, até pode ser, respondi. Mas expliquei que não era muito brasileiro. E convidei as três para meu apartamento, onde tomamos vinho a noite toda até o amanhecer. Noite e amanhecer é modo de dizer. Era verão e as noites eram de uma luz irreal, emanada por um sol paranóico que teimava em não deitar-se.
Sem jamais ter consumido drogas, faço a defesa de sua legalização. Verdade que certas drogas, como o crack e mais recentemente o tal de oxi, devem permanecer na ilegalidade, em função de sua letalidade. Mas há muito veneno em farmácia cuja compra não é proibida. Nossas leis tampouco proíbem que alguém se suicide.
Dito isto, nuestros vecinos de la Banda Oriental estão prestes a seguir o exemplo do Brasil, isto é, legalizar a maconha. Ora, direis, no Brasil o uso de drogas é ilegal. Teoricamente, até pode ser. Na prática, no dia em que um drogado for preso e permanecer em cana, o fato até merece manchete. Pois há mais de década não se prende mais alguém pelo uso de drogas.
Alguma exceção, cá e lá, até pode ocorrer. Mas, de modo geral, o consumo é livre. Aqui em São Paulo, a quinze minutos a pé de onde moro, os nóias fumam crack a céu aberto, sob o olhar complacente da polícia. O campus da PUC, em Perdizes, é um dos mais reputados fumódromos da Paulicéia. E só poderia ser assim. Em um país em que 250 mil condenados por crimes estão soltos nas ruas por falta de vagas carcerárias, onde colocar mais alguns milhões de consumidores de drogas?
O projeto de legalização da maconha no Uruguai, que recebeu ontem a aprovação na Câmara dos Deputados, deixa o país na "vanguarda" da questão da maconha, segundo seu presidente José Mujica, promotor da iniciativa. "Isto tem o caráter de uma batalha em todos os terrenos (...) Em nenhuma parte do mundo a repressão deu resultado", disse Mujica em seu programa de rádio. Ao mesmo tempo, caiu na contradição de todos os países que liberaram as drogas, ao criticar o tráfico, que gera "lucros capaz de corromper tudo".
Tanto a repressão não deu resultado, que hoje no Ocidente é mais fácil encontrar maconha que Melhoral. Desconheço país na Europa que mande, hoje, para a prisão, um usuário de drogas. Nos 70, quando estava na Suécia, havia bares especiais para menores, para o consumo de drogas, onde maior de idade não podia entrar. Quando vivia em Madri, nos 80, a maconha era oferecida livremente na Gran Via. Hoje, até o tímido Portugal liberou geral. O consumo e a posse de drogas para uso particular, sem distinçao entre drogas leves e pesadas, deixaram de ser considerados crimes em Portugal ... há treze anos.
Assim como saudou o papa por aceitar o homossexualismo – quando em verdade o papa não aceitou coisa nenhuma – a imprensa agora diz que o Uruguai tomou uma iniciativa pioneira no continente. Só se for para inglês ver.
Sempre tive simpatias pela Banda Oriental. Para começar, nasci quase lá. Nos anos 60, com a censura no Brasil, era onde íamos buscar filmes e livros aqui proibidos. Privilegiados eram os santanenses. Se quisessem ver O Último Tango em Paris, bastava atravessar a Sarandi. O resto do país teve de esperar não poucos anos após o lançamento do filme na França. Parece que os militares consideraram um atentado aos bons costumes ver a manteiga como artigo de cama e mesa.
Chiquitito, pero libre. Em Madri, tive como colega uma montevideana, de quem ouvi certo dia a expressão “al norte del Uruguay”. Não resisti: “Es decir que Ustedes se dán al lujo de tener un norte?” Ela ficou perplexa com meu comentário.
"Nós queremos parar com esta coisa na fronteira, onde tem início o vício pelas drogas – prossegue Mujica -. Não é fácil porque não temos uma receita. Temos consciência de que estamos fazendo uma experiência de vanguarda no mundo inteiro". Pelo jeito, acreditou no que a imprensa diz.
O projeto prevê que, após serem registrados, os usuários possam comprar até 40 gramas de maconha por mês em farmácias, além de permitir o autocultivo da erva. O texto da lei agora segue para votação no Senado. Caso seja aprovado – e isto sim é algo novo - o Uruguai se tornará o primeiro país do mundo em que a produção, a distribuição e a venda de maconha a consumidores adultos serão reguladas pelo Estado. Estrangeiros não-residentes no país não poderão comprar nem cultivar a canabis. Pergunta que se impõe: quem vai fiscalizar?
Rivera vai viver dias interessantes – poderia pensar algum desavisado. Não bastasse atrair milhares de gaúchos por ser zona franca, agora atrairá milhares de outros, em busca de outras culturas que não a livresca ou a cinematográfica. A bem da verdade, com a nonchalance que se fuma maconha no Brasil, não vale a pena deslocar-se até lá por um baseado.
Seja como for, o gesto dos uruguaios é um golpe na hipocrisia dos países onde a droga é proibida por lei mas permitida pelo Estado.
02 de agosto de 2013
janer cristaldo
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