VULTOS DA HISTÓRIA
GANDHI - PARTE 1
Nova biografia descreve relação
de amizade homoerótica entre Gandhi e o arquiteto alemão com quem ele viveu
durante anos na África do Sul
por JOSEPH
LELYVELD
O reverendo Doke, o primeiro dos muitos hagiógrafos
de Gandhi, tirou em 1908 uma fotografia do pensativo advogado, enquanto ele se
recuperava das agressões sofridas nas mãos dos patanes. Nessa foto ele mostra
pouca semelhança com o Gandhi que o mundo viria a conhecer. Magro e
descontraído, em trajes ocidentais, seus olhos têm uma expressão ensimesmada e
contemplativa, e não bondosa ou viva como a do homem público de tanga que,
pouco mais de dez anos depois, seria seguido por multidões na Índia. No
entanto, ele já definira os componentes essenciais de seu pensamento e de sua
estratégia de liderança. Com uma atitude ecumênica e aberta às religiões e às
relações entre seitas de toda sorte, leal segundo seus princípios ao Império
Britânico e aos valores inseridos no sistema jurídico inglês, porém agressivo
na resistência a leis coloniais injustas que o sistema não raramente defendia,
o Gandhi de Joanesburgo reivindicava agora o direito de obedecer, em todas as
esferas da vida, a sua consciência: o que ele ora chamava de “voz interior”,
ora simplesmente de “verdade”. No entanto, também era o Gandhiji ou o
Gandhibhai – os sufixos indicam respeito por uma pessoa mais velha ou um líder,
assim como o carinho que se sente por um parente ou amigo –, não fora ainda
canonizado como um mahatma e continuava dedicado a sua autocriação, procurando
o caminho para uma firme percepção de si mesmo e de sua missão. Ao se aproximar
dos 40 anos, podemos inferir que, em seu espírito, a pessoa e a missão se
sentiam incompletas.
O celibato, como disciplina espiritual, ocupava
agora seus pensamentos na vida diária, mas ainda não era tema de discurso
público; nas entrevistas com seu biógrafo batista, o assunto delicado do
brahmacharya não era nunca abordado, ou assim o livro de Doke nos leva a
crer. É provável que Gandhi, sempre um político, percebesse que esse era o lado
menos atraente de sua doutrina em evolução. Ele conhecera a paixão sexual, mas
jamais pudera tolerá-la ou, tendo feito a sua opção, simplesmente deixara a
questão de lado. “Além de não representar uma necessidade, o casamento é, na
realidade, um estorvo para o trabalho público e humanitário”, escreveria mais
tarde. Quem houvesse caído na armadilha do casamento, como ele e Kasturba,
poderia salvar-se vivendo junto castamente, como irmão e irmã. “Nenhum homem ou
mulher que viva a vida física ou animal é capaz de compreender a
espiritualidade ou a ética.”Gandhi gostava de crianças, mas via o parto como
uma prova óbvia de um lapso moral. Com irritante regularidade, ele atazanava
suas noras e outras pessoas próximas, recomendando-lhes que se emendassem e não
fizessem mais aquilo.
Em seus primeiros anos em Joanesburgo, seu
vegetarianismo ainda era uma questão de preferência moral, de higiene e de
herança, mas, afora abster-se de carne e moer seus próprios cereais, ele não
havia ainda imposto restrições severas a sua dieta, ainda não se convencera de
que a repressão a um apetite dependia da repressão a outro, que a abstinência
sexual e a dieta estavam ligadas de perto. Ainda bebia leite, apreciava pratos
condimentados em ambientes festivos, mas em breve esses prazeres seriam
bruscamente interrompidos. O vegetariano tentaria, durante algum tempo,
consumir apenas frutas, pois concluíra que o leite, outros laticínios e a
maioria dos condimentos tinham propriedades afrodisíacas; além disso,
renunciaria ao sal, a alimentos preparados e a segundos pratos numa refeição,
passando por fim a pesar o que ingeria e a mastigar bem cada bocado frugal de
uma papa preparada e amassada com todo o cuidado (em geral, uma mistura feita
de limão, mel, amêndoas, cereais e verduras com folhas), a fim de extrair o
máximo de nutrientes do mínimo possível de comida. Com isso, a mastigação se
tornou mais uma de suas várias causas e disciplinas secundárias.
A “frugalidade”, escreveria ele depois, era a norma
ética pela qual a dieta deveria ser medida, de acordo com a “economia de Deus”
e a interpretação do próprio Gandhi de um texto hinduísta, o Bhagavad Gita.
Essa norma preconizava um perpétuo “jejum parcial”, que exigiria “uma luta
implacável contra o hábito herdado ou adquirido de comer por prazer”.
Implacável era bem a palavra. Uma refeição lauta, escreveu Gandhi, era “um
crime contra Deus e o homem [...] porque os comilões privam o próximo de sua
porção”. Esse é o Gandhi de 1933, não o de 1906. Ainda estava por entrar em
cena o residente de um ashram e o preconizador de regras, que acabaria
por concluir que alimentos saborosos eram um convite à gula, que extrairia uma
sardônica satisfação em ser retratado como novidadeiro e excêntrico, que se
persuadiria, em suas refeições solitárias, de que menos é mais. Ele pode ter se
sentido impelido a distanciar-se da mulher e dos filhos, mas era ainda um ser
social na primeira fase do tempo que passou em Joanesburgo, quando, segundo consta,
participava de piqueniques e andava de bicicleta.
***
Em 1904, Gandhi conheceu Henry Polak, um jovem
redator que trabalhava no jornal The Critic. O encontro se deu na casa
de chá, vegetariana, de Ada Bissicks, na rua Rissik, defronte ao escritório de
advocacia de Gandhi. Polak tinha acabado de completar 21 anos e aquele era seu
primeiro ano na África do Sul. Ficara impressionado com uma carta que Gandhi
enviara a um jornal, falando das deploráveis condições sanitárias de uma área
habitada por indianos, onde grassara uma epidemia de peste. Conversaram sobre
uma ampla diversidade de assuntos e logo descobriram que ambos reverenciavam
Tolstói e admiravam as terapias naturais alemãs que envolviam aplicações de
lama. Meses depois, Polak fez com que Gandhi se entusiasmasse também por John
Ruskin, ao levar-lhe um exemplar da obra Unto This Last and Other Writings,
que, lido de uma assentada num trem noturno, inspirou a ideia da criação da
comunidade Phoenix. Trata-se de um momento de revelação que diz mais sobre
Gandhi e seus reflexos de ativista do que sobre Ruskin. O escritor inglês
condenava os valores deformados da sociedade industrial, que se concentra na
formação de capital e desdenha o trabalho físico, porém nunca pensara que seu
livro levaria à fundação de comunidades idealistas em áreas rurais. Apreensivo
com os custos de manutenção do Indian Opinion [jornal fundado por
Gandhi] em Durban, no mesmo instante Gandhi teve um estalo. Aplicando uma
torção tolstoiana ao ideal exposto por Ruskin – uma agropecuária vigorosa –,
ele encontrou a resposta capaz de resolver seu problema prático imediato: para
salvar o jornal, ele o transferiria para uma comunidade rural autossuficiente.
Naquele instante, Gandhi decidiu ser pai de toda uma comunidade – mais tarde seria
pai de uma nação –, de modo que reuniu a sua volta uma família ampliada de
seguidores, ocidentais e indianos, sobrinhos e primos e, por fim, a própria
mulher e os filhos. Por isso, quando, dois anos depois, escreveu ao irmão
falando de sua redefinição do termo “família”, tratava-se de um fato consumado.
Esperava-se que os membros da comunidade exercessem uma dupla função: trabalhar
como tipógrafos e produzir os próprios alimentos: a partir daí, o trabalho
manual passou a ser a solução automática de Gandhi para diversos problemas, que
iam da exploração colonial ao desemprego e a pobreza rurais. Ele o
transformaria num imperativo moral.
Menos de um ano após ter conhecido Gandhi, Henry
Polak foi morar com a família de Gandhi em Joanesburgo numa espaçosa casa
alugada, com uma ampla varanda no 1º andar, em Troyeville, na época um elegante
bairro de brancos, onde alguns vizinhos foram hostis à presença de uma família
indiana, talvez a única num raio de quilômetros. A maioria dos indianos era
forçada a residir em bairros específicos – prenúncio das cidades segregadas e
“áreas grupais” da era do apartheid –, no outro lado da cidade. É digno de nota
que o advogado não tenha se intimidado em ir morar no bairro, resolvendo se
instalar entre brancos, numa casa apropriada, pelos padrões desses brancos, a
sua posição profissional e sua renda. A casa de Gandhi ainda está de pé, numa
Troyeville hoje racialmente não segregada, um tanto degradada, a meio
quarteirão de outra casa, descendo a rua Albermarle, que erroneamente ostenta
uma placa informando que foi nela que Gandhi residiu. Polak se casou na casa de
Gandhi com uma gói inglesa, Millie Downs, no dia em que ela chegou à África do
Sul, no fim de 1905, tendo Gandhi como padrinho. “A voz dele era suave,
cantada, e de uma doçura quase juvenil”, disse Millie numa entrevista concedida
à BBC, muitos anos mais tarde, lembrando suas primeiras impressões do Gandhi de
Joanesburgo, que na mesma hora incluiu-a em sua família ampliada. Meses depois,
Henry foi mandado a Durban para cuidar do Indian Opinion, até que
Millie, que ele conheceranuma reunião da Sociedade Ética, em Londres, concluiu
que estava farta de Phoenix e da dignidade do trabalho rural. A situação se
inverteu mais tarde, em 1906, quando Gandhi, tendo se mudado de Troyeville,
voltou sem a família para Joburg, vindo da frente de combate da chamada guerra
contra os zulus, e foi morar com os Polak numa casinha mínima que ficava num
bairro chamado Belleville West. Depois os Polak se mudaram para uma área
chamada Highlands, levando consigo o reverenciado hóspede.
***
Quando a chegada de um bebê tornou o espaço na
residência dos Polak exíguo demais para as modestas necessidades de Gandhi, ele
foi morar com o arquiteto Hermann Kallenbach – uma situação que se tornou,
pode-se afirmar, o relacionamento mais íntimo, e o mais ambíguo, de sua vida.
“Eles formavam um casal”, disse Tridip Suhrud,
especialista em Gandhi, quando me encontrei com ele em Gandhinagar, capital de
Guzerate. Essa é uma forma sucinta de resumir o óbvio – Kallenbach comentou
mais tarde que tinham vivido juntos “quase na mesma cama” –, mas que espécie de
casal formavam? Gandhi fez questão de destruir o que chamou de “lógicas e
encantadoras mensagens de amor” de Kallenbach para ele, por julgar estar
respeitando o desejo do amigo de que elas não fossem vistas por outros olhos.
Mas o arquiteto guardou todas as mensagens de Gandhi – e décadas depois de sua
morte e da de Gandhi, seus descendentes decidiram vendê-las em hasta pública.
Só então os Arquivos Nacionais da Índia adquiriram as cartas, que por fim foram
publicadas. Foi tarde demais para que o psicanalista Erik Erikson as levasse em
conta, e os estudos mais recentes sobre Gandhi tendem a encará-las com cautela,
quando chegam a considerá-las. Um respeitado especialista em Gandhi classificou
o relacionamento como “claramente homoerótico”, e não como homossexual,
pretendendo com essa escolha de palavras descrever uma intensa atração mútua, e
nada mais. As conclusões correntes na pequena comunidade indiana da África do Sul,
passadas de boca a boca, eram, às vezes, menos sutis. Não era segredo na época,
ou depois, que Gandhi, após abandonar a mulher, tinha ido viver com um homem.
Filho de um comerciante de madeiras, Kallenbach
servira durante um ano no Exército alemão, e depois disso se formara em
arquitetura em Stuttgart, antes de chegar a Joanesburgo, em 1895, aos 24 anos.
Assim, já fazia quase uma década que morava na África do Sul quando Sandow, que
fora descoberto por Flo Ziegfeld e transformado em estrela internacional, levou
seu número, uma espécie de striptease masculino, a Joanesburgo, em 1904. É
difícil imaginar Kallenbach, que ainda não conhecia Gandhi, perdendo a
oportunidade de reaproximar-se de seu concidadão de Königsberg.
Se não enamorado, Gandhi sentiu-se claramente
atraído pelo arquiteto. Numa carta escrita em Londres, em 1909, ele diz: “Seu
retrato (o único) está no aparador da lareira, em meu quarto. A lareira fica
diante da cama.” Algodão e vaselina, diz ele a seguir, “sempre me lembram
você”. A intenção, ele prossegue, “é mostrar, a você e a mim, o quanto você
tomou posse de meu corpo. Isso é escravidão com vingança”. Devemos entender a
palavra “posse” ou a referência à vaselina, na época, tal como hoje, um
petrolato com muitas serventias corriqueiras? As conjecturas mais plausíveis
são que, no quarto de hotel em Londres, a vaselina podia estar relacionada a
clisteres, a que ele recorria com regularidade, ou pode, de outra forma,
prenunciar o entusiasmo de Gandhi, na velhice, por massagens, que se tornariam
uma parte bem conhecida da rotina diária de seus ashrams indianos,
despertando futricas que nunca cessaram de todo depois que se soube que ele em
geral queria que fossem feitas pelas mulheres de seu círculo.
Dois anos depois, Gandhi redigiu um pacto, entre
sério e brincalhão, para ser assinado pelo amigo, usando os apelidos carinhosos
e as saudações epistolares que, quase com certeza, foram criadas por ele, sem
dúvida o mais gaiato e espirituoso dos dois. Kallenbach, dois anos mais jovem
que Gandhi, passou a atender pela alcunha de “Câmara Baixa”, no sentido
parlamentar (uma alusão jocosa, ao que parece, a seu papel como fonte de
verbas). Gandhi é “Câmara Alta” (e, como tal, tinha a prerrogativa de vetar
gastos excessivos). Câmara Baixa pode opinar sobre questões de forma física e
todas as demais que estejam relacionadas com a fazenda Tolstói, a comunidade
por eles criada. Já Câmara Alta incumbe-se de lucubrar ideias profundas,
idealizar estratégias e guiar o desenvolvimento moral de seu companheiro nesse
tocante relacionamento bicameral. No pacto, datado de 29 de julho de 1911,
véspera de uma viagem que Kallenbach faria à Europa, Câmara Alta faz Câmara
Baixa prometer “não contrair nenhum compromisso nupcial em sua ausência” nem
“olhar com lascívia para nenhuma mulher”. Em seguida, as duas instâncias
legislativas penhoram mutuamente “mais amor, e mais amor ainda [...] um amor
tal que, esperam, o mundo jamais viu”. A essa altura, subtraídos os tempos das
penas de prisão de Gandhi em 1908 e da viagem a Londres em 1909, os dois
estavam juntos havia mais de três anos.
Cumpre não esquecer que só dispomos das cartas de
Gandhi (todas elas iniciadas por “Caro Câmara Baixa”). Portanto, é Gandhi que
proporciona o tom brincalhão que poderia ser facilmente atribuído a um amante,
sobretudo se deixarmos de lado o que mais as cartas contêm e seu contexto mais
amplo. Aqui a interpretação pode avançar por dois caminhos. Podemos nos
entregar a especulações ou examinar com mais atenção o que os dois homens
realmente dizem nesse período sobre seus esforços para reprimir os impulsos
sexuais.
Uma carta de 1908, de Kallenbach para seu irmão
Simon, na Alemanha, pouco depois de Gandhi ter-se mudado para sua casa, mostra
que ele já se encontrava sob a influência do hóspede havia algum tempo. “Nos
últimos dois anos, deixei de comer carne; e no ano passado também não toquei
mais em peixe”, ele escreve, “e durante os últimos dezoito meses renunciei a
minha vida sexual. [...] Mudei a minha vida cotidiana a fim de simplificá-la.”
Mais tarde é Kallenbach quem chama a atenção de Gandhi para a tendência
insidiosa que tem o leite de intensificar a excitação. Sempre extremista no
tocante a experiências dietéticas, Gandhi estende a proibição ao chocolate. “Eu
vejo a morte nos achocolatados”, diz ele a Polak, que nessa época não estava
envolvido nas experiências alimentícias a que Kallenbach se submetia
prontamente. Poucos alimentos eram tão “calóricos”, no sentido de excitar
apetites ilícitos. Gandhi manda a Kallenbach versos sobre a ojeriza a “prazeres
corporais”. Segundo essa mensagem, temos corpos para aprender “autocontrole”.
20 de maio de 2012
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