"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 20 de maio de 2012

GANDHI



VULTOS DA HISTÓRIA
GANDHI  -  PARTE 1

 “Você será sempre você e só você para mim”

Nova biografia descreve relação de amizade homoerótica entre Gandhi e o arquiteto alemão com quem ele viveu durante anos na África do Sul
por JOSEPH LELYVELD
O reverendo Doke, o primeiro dos muitos hagiógrafos de Gandhi, tirou em 1908 uma fotografia do pensativo advogado, enquanto ele se recuperava das agressões sofridas nas mãos dos patanes. Nessa foto ele mostra pouca semelhança com o Gandhi que o mundo viria a conhecer. Magro e descontraído, em trajes ocidentais, seus olhos têm uma expressão ensimesmada e contemplativa, e não bondosa ou viva como a do homem público de tanga que, pouco mais de dez anos depois, seria seguido por multidões na Índia. No entanto, ele já definira os componentes essenciais de seu pensamento e de sua estratégia de liderança. Com uma atitude ecumênica e aberta às religiões e às relações entre seitas de toda sorte, leal segundo seus princípios ao Império Britânico e aos valores inseridos no sistema jurídico inglês, porém agressivo na resistência a leis coloniais injustas que o sistema não raramente defendia, o Gandhi de Joanesburgo reivindicava agora o direito de obedecer, em todas as esferas da vida, a sua consciência: o que ele ora chamava de “voz interior”, ora simplesmente de “verdade”. No entanto, também era o Gandhiji ou o Gandhibhai – os sufixos indicam respeito por uma pessoa mais velha ou um líder, assim como o carinho que se sente por um parente ou amigo –, não fora ainda canonizado como um mahatma e continuava dedicado a sua autocriação, procurando o caminho para uma firme percepção de si mesmo e de sua missão. Ao se aproximar dos 40 anos, podemos inferir que, em seu espírito, a pessoa e a missão se sentiam incompletas.

O celibato, como disciplina espiritual, ocupava agora seus pensamentos na vida diária, mas ainda não era tema de discurso público; nas entrevistas com seu biógrafo batista, o assunto delicado do brahmacharya não era nunca abordado, ou assim o livro de Doke nos leva a crer. É provável que Gandhi, sempre um político, percebesse que esse era o lado menos atraente de sua doutrina em evolução. Ele conhecera a paixão sexual, mas jamais pudera tolerá-la ou, tendo feito a sua opção, simplesmente deixara a questão de lado. “Além de não representar uma necessidade, o casamento é, na realidade, um estorvo para o trabalho público e humanitário”, escreveria mais tarde. Quem houvesse caído na armadilha do casamento, como ele e Kasturba, poderia salvar-se vivendo junto castamente, como irmão e irmã. “Nenhum homem ou mulher que viva a vida física ou animal é capaz de compreender a espiritualidade ou a ética.”Gandhi gostava de crianças, mas via o parto como uma prova óbvia de um lapso moral. Com irritante regularidade, ele atazanava suas noras e outras pessoas próximas, recomendando-lhes que se emendassem e não fizessem mais aquilo.

Em seus primeiros anos em Joanesburgo, seu vegetarianismo ainda era uma questão de preferência moral, de higiene e de herança, mas, afora abster-se de carne e moer seus próprios cereais, ele não havia ainda imposto restrições severas a sua dieta, ainda não se convencera de que a repressão a um apetite dependia da repressão a outro, que a abstinência sexual e a dieta estavam ligadas de perto. Ainda bebia leite, apreciava pratos condimentados em ambientes festivos, mas em breve esses prazeres seriam bruscamente interrompidos. O vegetariano tentaria, durante algum tempo, consumir apenas frutas, pois concluíra que o leite, outros laticínios e a maioria dos condimentos tinham propriedades afrodisíacas; além disso, renunciaria ao sal, a alimentos preparados e a segundos pratos numa refeição, passando por fim a pesar o que ingeria e a mastigar bem cada bocado frugal de uma papa preparada e amassada com todo o cuidado (em geral, uma mistura feita de limão, mel, amêndoas, cereais e verduras com folhas), a fim de extrair o máximo de nutrientes do mínimo possível de comida. Com isso, a mastigação se tornou mais uma de suas várias causas e disciplinas secundárias.

A “frugalidade”, escreveria ele depois, era a norma ética pela qual a dieta deveria ser medida, de acordo com a “economia de Deus” e a interpretação do próprio Gandhi de um texto hinduísta, o Bhagavad Gita. Essa norma preconizava um perpétuo “jejum parcial”, que exigiria “uma luta implacável contra o hábito herdado ou adquirido de comer por prazer”. Implacável era bem a palavra. Uma refeição lauta, escreveu Gandhi, era “um crime contra Deus e o homem [...] porque os comilões privam o próximo de sua porção”. Esse é o Gandhi de 1933, não o de 1906. Ainda estava por entrar em cena o residente de um ashram e o preconizador de regras, que acabaria por concluir que alimentos saborosos eram um convite à gula, que extrairia uma sardônica satisfação em ser retratado como novidadeiro e excêntrico, que se persuadiria, em suas refeições solitárias, de que menos é mais. Ele pode ter se sentido impelido a distanciar-se da mulher e dos filhos, mas era ainda um ser social na primeira fase do tempo que passou em Joanesburgo, quando, segundo consta, participava de piqueniques e andava de bicicleta.

***

Em 1904, Gandhi conheceu Henry Polak, um jovem redator que trabalhava no jornal The Critic. O encontro se deu na casa de chá, vegetariana, de Ada Bissicks, na rua Rissik, defronte ao escritório de advocacia de Gandhi. Polak tinha acabado de completar 21 anos e aquele era seu primeiro ano na África do Sul. Ficara impressionado com uma carta que Gandhi enviara a um jornal, falando das deploráveis condições sanitárias de uma área habitada por indianos, onde grassara uma epidemia de peste. Conversaram sobre uma ampla diversidade de assuntos e logo descobriram que ambos reverenciavam Tolstói e admiravam as terapias naturais alemãs que envolviam aplicações de lama. Meses depois, Polak fez com que Gandhi se entusiasmasse também por John Ruskin, ao levar-lhe um exemplar da obra Unto This Last and Other Writings, que, lido de uma assentada num trem noturno, inspirou a ideia da criação da comunidade Phoenix. Trata-se de um momento de revelação que diz mais sobre Gandhi e seus reflexos de ativista do que sobre Ruskin. O escritor inglês condenava os valores deformados da sociedade industrial, que se concentra na formação de capital e desdenha o trabalho físico, porém nunca pensara que seu livro levaria à fundação de comunidades idealistas em áreas rurais. Apreensivo com os custos de manutenção do Indian Opinion [jornal fundado por Gandhi] em Durban, no mesmo instante Gandhi teve um estalo. Aplicando uma torção tolstoiana ao ideal exposto por Ruskin – uma agropecuária vigorosa –, ele encontrou a resposta capaz de resolver seu problema prático imediato: para salvar o jornal, ele o transferiria para uma comunidade rural autossuficiente. Naquele instante, Gandhi decidiu ser pai de toda uma comunidade – mais tarde seria pai de uma nação –, de modo que reuniu a sua volta uma família ampliada de seguidores, ocidentais e indianos, sobrinhos e primos e, por fim, a própria mulher e os filhos. Por isso, quando, dois anos depois, escreveu ao irmão falando de sua redefinição do termo “família”, tratava-se de um fato consumado. Esperava-se que os membros da comunidade exercessem uma dupla função: trabalhar como tipógrafos e produzir os próprios alimentos: a partir daí, o trabalho manual passou a ser a solução automática de Gandhi para diversos problemas, que iam da exploração colonial ao desemprego e a pobreza rurais. Ele o transformaria num imperativo moral.

Menos de um ano após ter conhecido Gandhi, Henry Polak foi morar com a família de Gandhi em Joanesburgo numa espaçosa casa alugada, com uma ampla varanda no 1º andar, em Troyeville, na época um elegante bairro de brancos, onde alguns vizinhos foram hostis à presença de uma família indiana, talvez a única num raio de quilômetros. A maioria dos indianos era forçada a residir em bairros específicos – prenúncio das cidades segregadas e “áreas grupais” da era do apartheid –, no outro lado da cidade. É digno de nota que o advogado não tenha se intimidado em ir morar no bairro, resolvendo se instalar entre brancos, numa casa apropriada, pelos padrões desses brancos, a sua posição profissional e sua renda. A casa de Gandhi ainda está de pé, numa Troyeville hoje racialmente não segregada, um tanto degradada, a meio quarteirão de outra casa, descendo a rua Albermarle, que erroneamente ostenta uma placa informando que foi nela que Gandhi residiu. Polak se casou na casa de Gandhi com uma gói inglesa, Millie Downs, no dia em que ela chegou à África do Sul, no fim de 1905, tendo Gandhi como padrinho. “A voz dele era suave, cantada, e de uma doçura quase juvenil”, disse Millie numa entrevista concedida à BBC, muitos anos mais tarde, lembrando suas primeiras impressões do Gandhi de Joanesburgo, que na mesma hora incluiu-a em sua família ampliada. Meses depois, Henry foi mandado a Durban para cuidar do Indian Opinion, até que Millie, que ele conheceranuma reunião da Sociedade Ética, em Londres, concluiu que estava farta de Phoenix e da dignidade do trabalho rural. A situação se inverteu mais tarde, em 1906, quando Gandhi, tendo se mudado de Troyeville, voltou sem a família para Joburg, vindo da frente de combate da chamada guerra contra os zulus, e foi morar com os Polak numa casinha mínima que ficava num bairro chamado Belleville West. Depois os Polak se mudaram para uma área chamada Highlands, levando consigo o reverenciado hóspede.

***

Quando a chegada de um bebê tornou o espaço na residência dos Polak exíguo demais para as modestas necessidades de Gandhi, ele foi morar com o arquiteto Hermann Kallenbach – uma situação que se tornou, pode-se afirmar, o relacionamento mais íntimo, e o mais ambíguo, de sua vida.

“Eles formavam um casal”, disse Tridip Suhrud, especialista em Gandhi, quando me encontrei com ele em Gandhinagar, capital de Guzerate. Essa é uma forma sucinta de resumir o óbvio – Kallenbach comentou mais tarde que tinham vivido juntos “quase na mesma cama” –, mas que espécie de casal formavam? Gandhi fez questão de destruir o que chamou de “lógicas e encantadoras mensagens de amor” de Kallenbach para ele, por julgar estar respeitando o desejo do amigo de que elas não fossem vistas por outros olhos. Mas o arquiteto guardou todas as mensagens de Gandhi – e décadas depois de sua morte e da de Gandhi, seus descendentes decidiram vendê-las em hasta pública. Só então os Arquivos Nacionais da Índia adquiriram as cartas, que por fim foram publicadas. Foi tarde demais para que o psicanalista Erik Erikson as levasse em conta, e os estudos mais recentes sobre Gandhi tendem a encará-las com cautela, quando chegam a considerá-las. Um respeitado especialista em Gandhi classificou o relacionamento como “claramente homoerótico”, e não como homossexual, pretendendo com essa escolha de palavras descrever uma intensa atração mútua, e nada mais. As conclusões correntes na pequena comunidade indiana da África do Sul, passadas de boca a boca, eram, às vezes, menos sutis. Não era segredo na época, ou depois, que Gandhi, após abandonar a mulher, tinha ido viver com um homem.

uma época em que o conceito de amor platônico tem pouca credibilidade, detalhes do relacionamento e trechos de cartas, bem selecionados, podem ser dispostos de forma a levar a uma conclusão. Kallenbach, criado e educado na Prússia Oriental, foi, durante toda a vida, solteiro, ginasta e fisiculturista, “tendo recebido treinamento físico das mãos de Sandow”, como o próprio Gandhi um dia declarou com orgulho. Estava se referindo a Eugen Sandow, atleta ainda respeitado como “o pai do moderno fisiculturismo”, contemporâneo de Kallenbach na então Königsberg (hoje a cidade de Kaliningrado, num enclave russo no Báltico, entre a Polônia e a Lituânia). Gandhi interessou-se a vida inteira pela fisiologia, sobretudo no que dizia respeito aos apetites, mas nunca, nem é preciso dizer, pelo fisiculturismo. Seu torso esguio – dependendo de seus jejuns, ele pesava de 48 a 53,5 quilos, não chegando a 1,70 metro – acabou sendo mais conhecido que o de Sandow. Mas em seu auge foi esse atleta supermusculoso que se tornou o astro internacional, o precursor de Charles Atlas e Arnold Schwarzenegger – uma verdadeira celebridade, o suficiente para aparecer várias vezes no pensamento de Leopold Bloom, o protagonista do Ulisses, de Joyce.

Filho de um comerciante de madeiras, Kallenbach servira durante um ano no Exército alemão, e depois disso se formara em arquitetura em Stuttgart, antes de chegar a Joanesburgo, em 1895, aos 24 anos. Assim, já fazia quase uma década que morava na África do Sul quando Sandow, que fora descoberto por Flo Ziegfeld e transformado em estrela internacional, levou seu número, uma espécie de striptease masculino, a Joanesburgo, em 1904. É difícil imaginar Kallenbach, que ainda não conhecia Gandhi, perdendo a oportunidade de reaproximar-se de seu concidadão de Königsberg.

Se não enamorado, Gandhi sentiu-se claramente atraído pelo arquiteto. Numa carta escrita em Londres, em 1909, ele diz: “Seu retrato (o único) está no aparador da lareira, em meu quarto. A lareira fica diante da cama.” Algodão e vaselina, diz ele a seguir, “sempre me lembram você”. A intenção, ele prossegue, “é mostrar, a você e a mim, o quanto você tomou posse de meu corpo. Isso é escravidão com vingança”. Devemos entender a palavra “posse” ou a referência à vaselina, na época, tal como hoje, um petrolato com muitas serventias corriqueiras? As conjecturas mais plausíveis são que, no quarto de hotel em Londres, a vaselina podia estar relacionada a clisteres, a que ele recorria com regularidade, ou pode, de outra forma, prenunciar o entusiasmo de Gandhi, na velhice, por massagens, que se tornariam uma parte bem conhecida da rotina diária de seus ashrams indianos, despertando futricas que nunca cessaram de todo depois que se soube que ele em geral queria que fossem feitas pelas mulheres de seu círculo.

Dois anos depois, Gandhi redigiu um pacto, entre sério e brincalhão, para ser assinado pelo amigo, usando os apelidos carinhosos e as saudações epistolares que, quase com certeza, foram criadas por ele, sem dúvida o mais gaiato e espirituoso dos dois. Kallenbach, dois anos mais jovem que Gandhi, passou a atender pela alcunha de “Câmara Baixa”, no sentido parlamentar (uma alusão jocosa, ao que parece, a seu papel como fonte de verbas). Gandhi é “Câmara Alta” (e, como tal, tinha a prerrogativa de vetar gastos excessivos). Câmara Baixa pode opinar sobre questões de forma física e todas as demais que estejam relacionadas com a fazenda Tolstói, a comunidade por eles criada. Já Câmara Alta incumbe-se de lucubrar ideias profundas, idealizar estratégias e guiar o desenvolvimento moral de seu companheiro nesse tocante relacionamento bicameral. No pacto, datado de 29 de julho de 1911, véspera de uma viagem que Kallenbach faria à Europa, Câmara Alta faz Câmara Baixa prometer “não contrair nenhum compromisso nupcial em sua ausência” nem “olhar com lascívia para nenhuma mulher”. Em seguida, as duas instâncias legislativas penhoram mutuamente “mais amor, e mais amor ainda [...] um amor tal que, esperam, o mundo jamais viu”. A essa altura, subtraídos os tempos das penas de prisão de Gandhi em 1908 e da viagem a Londres em 1909, os dois estavam juntos havia mais de três anos.

Cumpre não esquecer que só dispomos das cartas de Gandhi (todas elas iniciadas por “Caro Câmara Baixa”). Portanto, é Gandhi que proporciona o tom brincalhão que poderia ser facilmente atribuído a um amante, sobretudo se deixarmos de lado o que mais as cartas contêm e seu contexto mais amplo. Aqui a interpretação pode avançar por dois caminhos. Podemos nos entregar a especulações ou examinar com mais atenção o que os dois homens realmente dizem nesse período sobre seus esforços para reprimir os impulsos sexuais.

Uma carta de 1908, de Kallenbach para seu irmão Simon, na Alemanha, pouco depois de Gandhi ter-se mudado para sua casa, mostra que ele já se encontrava sob a influência do hóspede havia algum tempo. “Nos últimos dois anos, deixei de comer carne; e no ano passado também não toquei mais em peixe”, ele escreve, “e durante os últimos dezoito meses renunciei a minha vida sexual. [...] Mudei a minha vida cotidiana a fim de simplificá-la.” Mais tarde é Kallenbach quem chama a atenção de Gandhi para a tendência insidiosa que tem o leite de intensificar a excitação. Sempre extremista no tocante a experiências dietéticas, Gandhi estende a proibição ao chocolate. “Eu vejo a morte nos achocolatados”, diz ele a Polak, que nessa época não estava envolvido nas experiências alimentícias a que Kallenbach se submetia prontamente. Poucos alimentos eram tão “calóricos”, no sentido de excitar apetites ilícitos. Gandhi manda a Kallenbach versos sobre a ojeriza a “prazeres corporais”. Segundo essa mensagem, temos corpos para aprender “autocontrole”.

20 de maio de 2012

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