PARTE 3
A fuga do Opala preto
No exato instante em que Costa e Silva
abria a reunião, tendo o cuidado de colocar dois gravadores em cima da mesa de
mogno, o AI-5, que oficialmente não existia, já tinha feito sua primeira
vítima. O jornalista Rogério Monteiro, militante do Partido Comunista
Brasileiro, assessorava os deputados estaduais Fabiano Vilanova e Alberto
Rajão, ambos do Partidão, na ilegalidade, mas eleitos pelo MDB do Rio de
Janeiro. Às 14h30 Monteiro participaria de uma reunião na casa da deputada Yara
Vargas, em Copacabana, numa tentativa de convocar a Assembléia Legislativa
extraordinariamente, já que a casa estava em recesso de fim de ano. Ao
meio-dia, Rogério Monteiro desceu as escadarias da Assembléia Legislativa com o
general Olympio Mourão Filho, que rompera com a revolução de 1964 e tornara-se
célebre com a frase "Em matéria de política, sou uma vaca fardada".
Mourão seguiu em direção à Biblioteca Nacional. Monteiro foi para o lado do
Teatro Municipal.
Na calçada da Rua 13 de Maio, ao lado
do teatro, alguém chamou o jornalista - Rogério Monteiro fingiu não ouvir e
continuou a caminhar. Dois agentes da polícia correram em sua direção. Exigiram
que ele entrasse num Opala preto. "Naquele instante imaginei: não posso
entrar nesse carro. Já que a prisão é inevitável, vou provocá-la na frente da
Assembléia Legislativa", lembra Monteiro. "Corri, comecei a gritar,
falava meu nome em voz alta. Todo mundo que estava por perto ouviu. Garanti
minha sobrevivência." Ele foi levado para o quartel Caetano de Farias,
onde permaneceu até as 23h30. Dali, foi transferido para as instalações do
Dops. No fim da noite, chegou à sua cela o também jornalista Oswaldo Peralva,
diretor de redação do Correio da Manhã. "Peralva, que prazer!", disse
Monteiro. Peralva irritou-se com o comentário até que Monteiro pudesse explicar
o que significava o "que prazer". "Era o prazer de saber que
tinha alguém para conversar na prisão, um fraternal amigo." Depois de
Peralva chegaram o jornalista Hélio Fernandes e Carlos Lacerda. No dia
seguinte, à noite, seria a vez de o ator Mário Lago ingressar no Caetano de
Farias.
O abraço de Mário Lago e Lacerda
Mário Lago chegou à cadeia ainda
maquiado e com a calça de veludo de um de seus personagens. No sábado 14, seria
a estréia da peça Inspetor, Venha Correndo no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana.
Era uma comédia em que Lago fazia o papel do inspetor. Não um, mas dois
inspetores foram buscá-lo no teatro antes do início do espetáculo. Mário Lago
atravessou a platéia, atônita, ao lado dos agentes policiais. Um deles era o
censor que, na véspera, assistira ao ensaio final para a censura. Ao chegar em
casa, depois da sessão para os censores, Mário Lago escutou ao lado da mulher,
na TV, o anúncio do AI-5. Comentou: "O caldo ferveu, vem chumbo grosso por
aí". Na manhã seguinte, ela o aconselhou a pedir o cancelamento do
espetáculo alegando não estar se sentindo bem. Lago não quis. Ao chegar ao
quartel Caetano de Farias, ele foi informado de que ali já se encontrava o
ex-governador Carlos Lacerda, seu inimigo há décadas. "Não falo com ele",
disse Lago. Lá dentro, na cela, Lacerda fazia a mesma promessa. "Não falo
com ele." Os dois trataram de descumprir a promessa vã. Ao se encontrarem,
o que sobrou foi um fraternal abraço e um comentário de Carlos Lacerda:
"Estamos no mesmo barco agora".
O dia dos cegos
No mesmo barco estava a redação do
Jornal do Brasil, na Avenida Rio Branco, 110. Às 22 horas, o editor-chefe do
jornal, Alberto Dines, reunira-se com alguns de seus editores mais próximos
para ouvir o AI-5 no alto-falante sintonizado na Rádio Jornal do Brasil. Ao
final do anúncio, Dines saiu da sala, uma das únicas da redação com
ar-condicionado, e subiu para falar com o dono do jornal, Manoel Francisco
Nascimento Brito. "Vem censura aí, e não será por poucos dias. Quero a
autorização do senhor para alertar nossos leitores de que estaremos sob
censura", disse Dines. Nascimento Brito limitou-se a responder: "Vá
em frente, mas não quero bagunça". Quando retornou à redação, já próximo
das 23 horas, Dines foi recepcionado por dois majores do Exército que ali
estavam como censores. Os dois majores terminariam a madrugada de 13 para 14 de
dezembro humilhados por uma das mais inventivas primeiras páginas da história
do jornalismo no Brasil - foram driblados por Alberto Dines como Garrincha
entortava um joão qualquer. No canto superior direito lia-se o seguinte:
"Ontem foi o Dia dos Cegos". No canto superior esquerdo, tradicional
espaço da previsão do tempo, o leitor era apresentado à seguinte situação
climática: "Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O
país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38 graus, em Brasília. Mín.: 5
graus, nas Laranjeiras".
Na manhã do dia 14 já não eram dois - e
sim sete - os censores do Jornal do Brasil. O chefe deles, um major gaúcho,
entrou na redação gritando: "Você me fez de palhaço". Dines gritou
mais alto: "O senhor saia da minha sala, comporte-se". Outro major
ainda tentou pedir calma. No domingo 15 o Jornal do Brasil não circulou porque
um de seus diretores, o diplomata José Sette Câmara, tinha sido procurado pela
polícia - e Nascimento Brito anunciara tirar o jornal de circulação caso isso
acontecesse. Alberto Dines seria preso no dia 22 de dezembro.
A resistência na mesa do bar
O dia 13 de dezembro de 1968 não era
mesmo um bom dia para festa. Mas houve, sim, quem tenha insistido em fazê-la.
Naquela noite amarga, de gatos pardos, foi fundado o Bar Bip-bip, em
Copacabana, no Rio de Janeiro, hoje reduto do melhor chorinho da cidade. Uma
placa à entrada do bar informa: "Bip-bip, fundado em 13-12-1968 em
homenagem à Mocidade Brasileira". O atual proprietário do botequim,
Alfredo Melo, anos depois cruzaria sua vida com a do bar e a do AI-5. Em 13 de
dezembro de 30 anos atrás, Melo preparava-se para estar na inauguração do
recinto como mero freqüentador. Ao ouvir no rádio o anúncio do Ato
Institucional no 5, logo intuiu que não era boa idéia ir ao rega-bofe. Pegou um
táxi e foi para Bangu, bairro onde moravam seus pais e ele mesmo passara toda a
vida até alugar um apartamento em Copacabana. Em Bangu, acionou o Fusca azul
que costumava ficar parado na garagem e iniciou um périplo: foi à casa dos
amigos que, naquele ano de 1968, se meteram em política e eram potenciais
vítimas do AI-5. Um de seus amigos, assustado, chegou a rasgar uma carta que o
poeta Carlos Drummond de Andrade enviara celebrando a criação de um centro
acadêmico com seu nome. Em 1998 será a primeira vez que o Bip-bip de Alfredo
Melo comemorará sua inauguração no dia 13, cravado. "Não festejávamos de
raiva - era uma espécie de resistência silenciosa."
O placar: 22 a 1
O voto de cada ministro nas anotações
de Costa e Silva. Apenas Pedro Aleixo disse não
1. Vice-presidente (Pedro Aleixo): não;
optou pelo estado de sítio
2. Ministro da Marinha (Augusto
Radmaker): sim, repressão do ato praticado pelo dep. M.M. Alves
3. Ministro do Exército (Lyra Tavares):
sim
4. Min. Rel. Ext. (Magalhães Pinto):
sim
5. Min. da Fazenda (Delfim Netto): sim
6. Min. Transportes (Mário Andreazza):
sim
7. Min. Agricultura (Ivo Arzua): sim
8. Min. Trabalho (Jarbas Passarinho):
sim
9. Min. Saúde (Leonel Miranda): sim
10. Min. Aeronáutica (Márcio de Souza e
Mello): sim
11. Min. Educ. e Cultura (Tarso Dutra):
sim, com modificação
12. Min. Minas e Energia (Costa
Cavalcante): sim
13. Min. Interior (Afonso Albuquerque):
sim
14. Min. Planejamento (Hélio Beltrão):
sim
15. Min. Comunicações (Carlos Simas):
sim
16. Chefe SNI (Médici): sim
17. Chefe EMFA (Orlando Geisel): sim
18. Chefe E.M. Armada (Adalberto de
Barros Nunes): sim
19. Chefe E.M. Exército (Adalberto dos
Santos): sim
20. Chefe E.M. Aeronáutica (Carlos
Alberto Huet): sim
21. Min. Justiça (Gama e Silva): sim
22. Chefe Gab. Civil (Rondon Pacheco):
sim
23. Chefe Gab. Militar (Jayme
Portella): sim
A HERANÇA DAS TREVAS
A contabilidade dos dez anos de
vigência do AI-5
Filmes proibidos - 500
Peças de teatro vetadas - 450
Livros censurados - 200
Revistas retiradas de circulação - 100
Letras de música cortadas - 50
Capítulos de novela cancelados - 12
Direitos políticos perdidos - 66
Cassações de mandatos - 313
Aposentadorias compulsórias - 348
Militares reformados - 139
Demissões de executivos do governo -
129
Fonte: Iuperj/Zuenir Ventura (1968 - O
Ano que Não Terminou)
27 de julho de 2012
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