William Shakespeare integra a categoria dos gênios que a humanidade
felizmente produz de vez em quando. As peças de teatro que criou, quatro séculos
atrás, continuam atualíssimas, por tratarem de temas eternos e recorrentes.
O Bardo inglês era tão extraordinário que escreveria também sobre futebol, se seus conterrâneos já o tivessem inventado naquela época. Quem sabe Hamlet não diria a célebre "Ser ou não ser" a segurar uma bola e não uma caveira? Não duvido nada.
Pois pego carona na obra-prima do poeta para falar da Fifa e sua embromação. Na mesma Hamlet, no primeiro ato, um dos sentinelas do castelo real, um tal Marcellus, percebe que o clima por lá anda pesado, sente que tem coisa esquisita no ar, um cheiro de traição, falsetas e tramoias. Daí, num momento de inspiração, lasca a frase clássica - "Há algo de podre no reino da Dinamarca" -, que se usa ainda hoje, até em crônica esportiva, quando se pretende fazer referência a uma instituição deteriorada.
A Fifa pode comparar-se a um reino, principado, protetorado, califado, capitania hereditária. Enfim, a um desses lugares em que existe a figura de chefe supremo, que passa a vida toda, ou boa parte dela, a dar as cartas sem contestação. Jules Rimet ficou por lá 33 anos, Stanley Rous 13, João Havelange 24 e Joseph Blatter assumiu em 1998. E o poder só tem crescido, de um para outro.
Há muito ela deixou de ser uma entidade apenas esportiva, para transformar-se numa portentosa empresa, que movimenta bilhões de dólares por ano no mundo todo. O presidente é recebido como chefe de estado por onde passa.
Nunca a Fifa teve tanta influência e jamais viveu fase tão turbulenta quanto agora. Não do ponto de vista financeiro, que esse vai muito bem, obrigado.
O nó é moral, ético e atinge personagens importantes. Depois de muita fumaça e seguidos desmentidos, se comprovou o que o jornalista escocês Andrews Jennings alardeava numa campanha messiânica havia vários carnavais: figurões receberam propina, caíram nas garras da justiça e foram condenados. E o destemido repórter citava João Havelange e o ex-genro dele como dois dos envolvidos.
A Fifa driblou a história o quanto pôde, até que decidiu abrir o jogo, por conveniência. Ok, disse herr Blatter, vocês venceram, os nomes são esses mesmos, a sentença está à disposição de todos, não há o que esconder.
Transparência conveniente, porque assim se jogou pá de cal em dois ex-parceiros e agora desafetos. E necessária também, porque cresce o clamor internacional por mais esclarecimentos. Afinal, que história é essa de que Havelange e o ex-todo-poderoso da CBF ganharam dinheiro por baixo do pano sem que a Fifa soubesse? E com Blatter como braço direito de Havelange, sua cria e sucessor?!
O cartolão é habilidoso, tem jogo de cintura, mas dá pisadas de bola. Na tentativa de ressaltar os bons propósitos da Fifa, chegou a insinuar que a Alemanha comprou votos para ser sede do Mundial em 2006; voltou atrás, após levar uma prensa de Franz Beckenbauer. Sugeriu que vai investigar eventuais irregularidades na escolha de Rússia e Catar para organizar as Copas de 2018 e 2022, porém garante que, sem provas concretas, não se pode acusar ninguém. Morde e assopra.
Para prevenir-se do cerco que a justiça suíça ensaia sobre seu feudo, Blatter anunciou a criação de comitês para fazer devassa interna e punir dirigentes venais, não importa se aliados ou não. Hora do salve-se quem puder.
Fala a verdade, meu amigo: o velho Shakespeare continua moderno, não?
Antero Greco - O Estado de S.Paulo
18 de julho de 2012
O Bardo inglês era tão extraordinário que escreveria também sobre futebol, se seus conterrâneos já o tivessem inventado naquela época. Quem sabe Hamlet não diria a célebre "Ser ou não ser" a segurar uma bola e não uma caveira? Não duvido nada.
Pois pego carona na obra-prima do poeta para falar da Fifa e sua embromação. Na mesma Hamlet, no primeiro ato, um dos sentinelas do castelo real, um tal Marcellus, percebe que o clima por lá anda pesado, sente que tem coisa esquisita no ar, um cheiro de traição, falsetas e tramoias. Daí, num momento de inspiração, lasca a frase clássica - "Há algo de podre no reino da Dinamarca" -, que se usa ainda hoje, até em crônica esportiva, quando se pretende fazer referência a uma instituição deteriorada.
A Fifa pode comparar-se a um reino, principado, protetorado, califado, capitania hereditária. Enfim, a um desses lugares em que existe a figura de chefe supremo, que passa a vida toda, ou boa parte dela, a dar as cartas sem contestação. Jules Rimet ficou por lá 33 anos, Stanley Rous 13, João Havelange 24 e Joseph Blatter assumiu em 1998. E o poder só tem crescido, de um para outro.
Há muito ela deixou de ser uma entidade apenas esportiva, para transformar-se numa portentosa empresa, que movimenta bilhões de dólares por ano no mundo todo. O presidente é recebido como chefe de estado por onde passa.
Nunca a Fifa teve tanta influência e jamais viveu fase tão turbulenta quanto agora. Não do ponto de vista financeiro, que esse vai muito bem, obrigado.
O nó é moral, ético e atinge personagens importantes. Depois de muita fumaça e seguidos desmentidos, se comprovou o que o jornalista escocês Andrews Jennings alardeava numa campanha messiânica havia vários carnavais: figurões receberam propina, caíram nas garras da justiça e foram condenados. E o destemido repórter citava João Havelange e o ex-genro dele como dois dos envolvidos.
A Fifa driblou a história o quanto pôde, até que decidiu abrir o jogo, por conveniência. Ok, disse herr Blatter, vocês venceram, os nomes são esses mesmos, a sentença está à disposição de todos, não há o que esconder.
Transparência conveniente, porque assim se jogou pá de cal em dois ex-parceiros e agora desafetos. E necessária também, porque cresce o clamor internacional por mais esclarecimentos. Afinal, que história é essa de que Havelange e o ex-todo-poderoso da CBF ganharam dinheiro por baixo do pano sem que a Fifa soubesse? E com Blatter como braço direito de Havelange, sua cria e sucessor?!
O cartolão é habilidoso, tem jogo de cintura, mas dá pisadas de bola. Na tentativa de ressaltar os bons propósitos da Fifa, chegou a insinuar que a Alemanha comprou votos para ser sede do Mundial em 2006; voltou atrás, após levar uma prensa de Franz Beckenbauer. Sugeriu que vai investigar eventuais irregularidades na escolha de Rússia e Catar para organizar as Copas de 2018 e 2022, porém garante que, sem provas concretas, não se pode acusar ninguém. Morde e assopra.
Para prevenir-se do cerco que a justiça suíça ensaia sobre seu feudo, Blatter anunciou a criação de comitês para fazer devassa interna e punir dirigentes venais, não importa se aliados ou não. Hora do salve-se quem puder.
Fala a verdade, meu amigo: o velho Shakespeare continua moderno, não?
Antero Greco - O Estado de S.Paulo
18 de julho de 2012
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