“Vós, brasileiros, a quem eu considero os vencedores do Campeonato Mundial. Vós, jogadores, que a menos de poucas horas sereis aclamados campeões por milhões de compatriotas. Vós, que não possuís rivais em todo o hemisfério. Vós, que superais qualquer outro competidor. Vós, que eu já saúdo como vencedores ! Cumpri minha promessa construindo esse estádio. Agora, façam o seu dever, ganhando a Copa do Mundo !” Maracanã, 16 de julho de 1950. Os 254 alto-falantes ecoaram as palavras ufanistas e desrespeitosas aos uruguaios do prefeito do então Distrito Federal, Mendes de Moraes. Deu no Maracanazo.
A empáfia dos políticos, que organizaram romarias à concentração da seleção brasileira, posando com os jogadores para ilustrar santinhos nas eleições que se aproximavam, tirando uma casquinha da glória antecipada que nunca se concretizou, ajudou a selar a sorte dos comandados de Flávio Costa. A Celeste, ora, a Celeste era apenas um detalhe menor …
Esporte e política sempre andaram juntos. Como acontece, aliás, com qualquer atividade humana. Durante a ditadura militar, a Arena, partido governista (o do “sim senhor”), tomou uma surra do MDB nas urnas, em 1974. Para recuperar alguma popularidade, o almirante Heleno Nunes, arenista e presidente da CBD, propôs a fórmula “onde a Arena vai mal, um clube no Nacional”. Futebol para as massas, anestésico providencial.
Fora do futebol, não faltam exemplos. As Olimpíadas sempre foram palco de propaganda. Em 1936, a ribalta foi em Berlim e os nazistas, precursores do moderno marketing político, organizaram uma gigantesca exaltação aos ideais nacional-socialistas, paralela a uma demonstração de superioridade racial ariana.
Os atletas germânicos desfilavam e cantavam o hino nacional fazendo a saudação nazista. Leni Riefenstahl registrava tudo com tons épicos. Todos esperavam uma grande apoteose. No entanto, havia Jesse Owens. Negro norte-americano, neto de escravos, ganhou quatro medalhas de ouro no atletismo.
Hitler recusou-se a cumprimentá-lo. Goebbels e Hitler tinham ficado constrangidos também na derrota da seleção alemã de futebol contra os noruegueses. Os dois gols da vitória foram assinalados por Isaaksen, um nome de origem possivelmente judaica. Em 1980, 69 países, liderados pelos Estados Unidos, boicotaram as Olimpíadas de Moscou, como suposto protesto contra a invasão soviética ao Afeganistão.
O óbvio cinismo desta “justificativa” não demorou a ser desmascarado: o mesmo Afeganistão está ocupado militarmente há quase 12 anos por uma coalizão liderada pelos EUA, com expressiva participação britânica. Nem por isso alguém cogitou boicotar os Jogos Olímpicos de Londres que se aproximam.
UMA HISTÓRIA FANTÁSTICA
Somos fascinados por datas redondas. Pois bem, há 70 anos a capital da Ucrânia, Kiev, foi cenário de uma formidável demonstração de resistência contra o nazismo, e a ferramenta foi o futebol. É uma história extraordinária, que merece ser conhecida.
Nos anos 30, o Dínamo de Kiev era considerado um dos melhores times europeus. Com jogadores carismáticos e de alta técnica, tinha uma torcida orgulhosa e fiel. Depois da invasão nazista na URSS, em 1941, o time se dispersou. Alguns morreram combatendo os invasores.
O dono de uma padaria kievana, Josef Kordik, fanático por futebol, cruzou acidentalmente com o goleiro do Dínamo, Trusevich, que perambulava, esfarrapado, pela cidade. Com a ajuda de Trusevich, localizou os remanescentes do time e alguns outros do Lokomotiv. Todos passaram a trabalhar na padaria, onde podiam ao menos se alimentar um pouco melhor.
Orgulhoso de ter aqueles craques à mão, Kordik sugeriu aos alemães que reabrissem os estádios e promovessem um torneio de futebol. Para manter uma aparência de normalidade, os nazistas aceitaram. Foi então que Kordik reuniu “seus” jogadores e criou o Start FC. Sem campo de treino, sem uniforme, sem chuteiras, mas com o espírito de equipe e a habilidade que nunca desapareceram.
No dia 7 de junho de 1942, o Start começava uma trajetória impressionante, goleando implacavelmente times formados por colaboracionistas ucranianos e guarnições militares romenas, húngaras e alemãs. A torcida, a princípio cética, começava a identificar-se cada vez mais com aqueles jogadores, que, em condições totalmente adversas, arrasavam os representantes do inimigo.
Os alemães começaram a ficar preocupados. Convocaram, então, um time da Luftwaffe, a elite militar. O Flakelf teve a tarefa de baixar a crista daqueles insolentes Untermenschen. Foi um passeio: 5 x 1 para o Start.
A coisa tinha saído de controle. Os ucranianos já não escondiam o entusiasmo por seus ídolos e, de quebra, deixaram de andar cabisbaixos. O futebol se transformara num foco simbólico de resistência. Os nazistas exigiram uma revanche, que aconteceu três dias depois. Agora, porém, tomariam certas precauções. Convocaram alguns jogadores estilo panzer para reforçar o Flakelf. Avisaram, nada sutilmente, aos adversários, que uma nova vitória traria duras consequências. O juiz, da SS, foi instruído a ignorar as faltas dos alemães, que seriam particularmente violentos naquele jogo. Planejaram não apenas uma vitória, mas uma humilhação.
CULTURA FÍSICA
No dia da revanche, o pequeno estádio estava lotado. Os torcedores ucranianos disputavam o privilégio de olhar seus heróis. O Flakelf fez a saudação nazista para os oficiais que estavam presentes. Os jogadores do Start, mesmo ameaçados, se recusaram a fazê-lo. Ao invés disso, cruzaram o braço direito sobre o peito e gritaram: “FizcultHura !” O termo significa “cultura física” e, conforme destacou o jornalista escocês Andy Dougan, tem o “sentido de aprimoramento físico e mental pelo próprio bem do físico e da mente, em contraposição ao esporte, que contém um elemento competitivo e triunfalista”.
Começado o jogo, a violência dos jogadores alemães e a cumplicidade do juiz não impediram que prevalecesse a melhor técnica dos ucranianos. Ao final, nova vitória do Start: 5 x 3, com direito a uma jogada antológica do jovem atacante Klimenko, que driblou meio time alemão, inclusive o goleiro, e deixou a bola na linha de gol. Uma bofetada elegante, que não ficaria impune.
Poucos dias após a partida, todo o time foi preso e levado para o quartel da Gestapo. Durante três semanas, foram barbaramente torturados. Os nazistas queriam que eles admitissem crimes que não cometeram, que “justificassem” uma execução pública. Ninguém cedeu. Korotkykh, comunista, morreu sob tortura. Os demais foram levados para o campo de extermínio de Siretz, perto de Babi Yar.
Babi Yar, uma ravina, tinha sido usada para enterrar os quase 34 mil judeus assassinados em dois dias, logo após a tomada de Kiev. O campo de Siretz era comandado por um oficial sádico, Paul Radomsky. Lá, foram assassinados três dos principais jogadores do Start: Trusevich (um sobrevivente relata que, antes de ser morto, Trusevich gritou: O esporte vermelho nunca morrerá !), Kuzmenko e Klimenko (o “Garrincha” da revanche).
ORDENS DE HITLER
Pouco antes de ordenar a invasão da União Soviética, Hitler emitiu uma ordem autorizando os soldados alemães a atirar livremente nos oficiais soviéticos que pertencessem a órgãos políticos, sem direito a defesa. Comissários soviéticos e/ou membros graduados do Partido Comunista seriam invariavelmente entregues à SS para “tratamento especial”.
Sobre a Ucrânia, Hitler não tinha meias palavras. Devia ser esmagada, as principais cidades arrasadas, os ucranianos reduzidos à escravidão. Erich Koch, comissário do Reich para a Ucrânia, defendia a limpeza étnica.
Os homens com mais de 15 anos deveriam ser mortos e substituídos por “reprodutores da SS”. Sob sua administração, eram comuns enforcamentos públicos. Camponeses que sabiam ler e escrever podiam ser executados como “intelectuais”. Ucranianas grávidas eram forçadas a abortar para não reproduzir a “raça”. Depois de 778 dias de ocupação, 80% da população de Kiev tinha sido varrida do mapa.
Foram essas forças macabras que o Start derrotou no campo de futebol, há 70 anos. Metade do time pagou a dignidade com a vida. O chamado Jogo da Morte, para os que se lembram dele, é um vigoroso exemplo da capacidade humana de não se calar frente à opressão. Glória eterna a Timofeyev, Trusevich, Kuzmenko, Komarov, Klimenko, Korotkykh, Sukharev, Tyutchev, Goncharenko, Putistin e Melnik.
A empáfia dos políticos, que organizaram romarias à concentração da seleção brasileira, posando com os jogadores para ilustrar santinhos nas eleições que se aproximavam, tirando uma casquinha da glória antecipada que nunca se concretizou, ajudou a selar a sorte dos comandados de Flávio Costa. A Celeste, ora, a Celeste era apenas um detalhe menor …
Esporte e política sempre andaram juntos. Como acontece, aliás, com qualquer atividade humana. Durante a ditadura militar, a Arena, partido governista (o do “sim senhor”), tomou uma surra do MDB nas urnas, em 1974. Para recuperar alguma popularidade, o almirante Heleno Nunes, arenista e presidente da CBD, propôs a fórmula “onde a Arena vai mal, um clube no Nacional”. Futebol para as massas, anestésico providencial.
Fora do futebol, não faltam exemplos. As Olimpíadas sempre foram palco de propaganda. Em 1936, a ribalta foi em Berlim e os nazistas, precursores do moderno marketing político, organizaram uma gigantesca exaltação aos ideais nacional-socialistas, paralela a uma demonstração de superioridade racial ariana.
Os atletas germânicos desfilavam e cantavam o hino nacional fazendo a saudação nazista. Leni Riefenstahl registrava tudo com tons épicos. Todos esperavam uma grande apoteose. No entanto, havia Jesse Owens. Negro norte-americano, neto de escravos, ganhou quatro medalhas de ouro no atletismo.
Hitler recusou-se a cumprimentá-lo. Goebbels e Hitler tinham ficado constrangidos também na derrota da seleção alemã de futebol contra os noruegueses. Os dois gols da vitória foram assinalados por Isaaksen, um nome de origem possivelmente judaica. Em 1980, 69 países, liderados pelos Estados Unidos, boicotaram as Olimpíadas de Moscou, como suposto protesto contra a invasão soviética ao Afeganistão.
O óbvio cinismo desta “justificativa” não demorou a ser desmascarado: o mesmo Afeganistão está ocupado militarmente há quase 12 anos por uma coalizão liderada pelos EUA, com expressiva participação britânica. Nem por isso alguém cogitou boicotar os Jogos Olímpicos de Londres que se aproximam.
UMA HISTÓRIA FANTÁSTICA
Somos fascinados por datas redondas. Pois bem, há 70 anos a capital da Ucrânia, Kiev, foi cenário de uma formidável demonstração de resistência contra o nazismo, e a ferramenta foi o futebol. É uma história extraordinária, que merece ser conhecida.
Nos anos 30, o Dínamo de Kiev era considerado um dos melhores times europeus. Com jogadores carismáticos e de alta técnica, tinha uma torcida orgulhosa e fiel. Depois da invasão nazista na URSS, em 1941, o time se dispersou. Alguns morreram combatendo os invasores.
O dono de uma padaria kievana, Josef Kordik, fanático por futebol, cruzou acidentalmente com o goleiro do Dínamo, Trusevich, que perambulava, esfarrapado, pela cidade. Com a ajuda de Trusevich, localizou os remanescentes do time e alguns outros do Lokomotiv. Todos passaram a trabalhar na padaria, onde podiam ao menos se alimentar um pouco melhor.
Orgulhoso de ter aqueles craques à mão, Kordik sugeriu aos alemães que reabrissem os estádios e promovessem um torneio de futebol. Para manter uma aparência de normalidade, os nazistas aceitaram. Foi então que Kordik reuniu “seus” jogadores e criou o Start FC. Sem campo de treino, sem uniforme, sem chuteiras, mas com o espírito de equipe e a habilidade que nunca desapareceram.
No dia 7 de junho de 1942, o Start começava uma trajetória impressionante, goleando implacavelmente times formados por colaboracionistas ucranianos e guarnições militares romenas, húngaras e alemãs. A torcida, a princípio cética, começava a identificar-se cada vez mais com aqueles jogadores, que, em condições totalmente adversas, arrasavam os representantes do inimigo.
Os alemães começaram a ficar preocupados. Convocaram, então, um time da Luftwaffe, a elite militar. O Flakelf teve a tarefa de baixar a crista daqueles insolentes Untermenschen. Foi um passeio: 5 x 1 para o Start.
A coisa tinha saído de controle. Os ucranianos já não escondiam o entusiasmo por seus ídolos e, de quebra, deixaram de andar cabisbaixos. O futebol se transformara num foco simbólico de resistência. Os nazistas exigiram uma revanche, que aconteceu três dias depois. Agora, porém, tomariam certas precauções. Convocaram alguns jogadores estilo panzer para reforçar o Flakelf. Avisaram, nada sutilmente, aos adversários, que uma nova vitória traria duras consequências. O juiz, da SS, foi instruído a ignorar as faltas dos alemães, que seriam particularmente violentos naquele jogo. Planejaram não apenas uma vitória, mas uma humilhação.
CULTURA FÍSICA
No dia da revanche, o pequeno estádio estava lotado. Os torcedores ucranianos disputavam o privilégio de olhar seus heróis. O Flakelf fez a saudação nazista para os oficiais que estavam presentes. Os jogadores do Start, mesmo ameaçados, se recusaram a fazê-lo. Ao invés disso, cruzaram o braço direito sobre o peito e gritaram: “FizcultHura !” O termo significa “cultura física” e, conforme destacou o jornalista escocês Andy Dougan, tem o “sentido de aprimoramento físico e mental pelo próprio bem do físico e da mente, em contraposição ao esporte, que contém um elemento competitivo e triunfalista”.
Começado o jogo, a violência dos jogadores alemães e a cumplicidade do juiz não impediram que prevalecesse a melhor técnica dos ucranianos. Ao final, nova vitória do Start: 5 x 3, com direito a uma jogada antológica do jovem atacante Klimenko, que driblou meio time alemão, inclusive o goleiro, e deixou a bola na linha de gol. Uma bofetada elegante, que não ficaria impune.
Poucos dias após a partida, todo o time foi preso e levado para o quartel da Gestapo. Durante três semanas, foram barbaramente torturados. Os nazistas queriam que eles admitissem crimes que não cometeram, que “justificassem” uma execução pública. Ninguém cedeu. Korotkykh, comunista, morreu sob tortura. Os demais foram levados para o campo de extermínio de Siretz, perto de Babi Yar.
Babi Yar, uma ravina, tinha sido usada para enterrar os quase 34 mil judeus assassinados em dois dias, logo após a tomada de Kiev. O campo de Siretz era comandado por um oficial sádico, Paul Radomsky. Lá, foram assassinados três dos principais jogadores do Start: Trusevich (um sobrevivente relata que, antes de ser morto, Trusevich gritou: O esporte vermelho nunca morrerá !), Kuzmenko e Klimenko (o “Garrincha” da revanche).
ORDENS DE HITLER
Pouco antes de ordenar a invasão da União Soviética, Hitler emitiu uma ordem autorizando os soldados alemães a atirar livremente nos oficiais soviéticos que pertencessem a órgãos políticos, sem direito a defesa. Comissários soviéticos e/ou membros graduados do Partido Comunista seriam invariavelmente entregues à SS para “tratamento especial”.
Sobre a Ucrânia, Hitler não tinha meias palavras. Devia ser esmagada, as principais cidades arrasadas, os ucranianos reduzidos à escravidão. Erich Koch, comissário do Reich para a Ucrânia, defendia a limpeza étnica.
Os homens com mais de 15 anos deveriam ser mortos e substituídos por “reprodutores da SS”. Sob sua administração, eram comuns enforcamentos públicos. Camponeses que sabiam ler e escrever podiam ser executados como “intelectuais”. Ucranianas grávidas eram forçadas a abortar para não reproduzir a “raça”. Depois de 778 dias de ocupação, 80% da população de Kiev tinha sido varrida do mapa.
Foram essas forças macabras que o Start derrotou no campo de futebol, há 70 anos. Metade do time pagou a dignidade com a vida. O chamado Jogo da Morte, para os que se lembram dele, é um vigoroso exemplo da capacidade humana de não se calar frente à opressão. Glória eterna a Timofeyev, Trusevich, Kuzmenko, Komarov, Klimenko, Korotkykh, Sukharev, Tyutchev, Goncharenko, Putistin e Melnik.
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