"De repente, não mais que de repente", como escreveu o poeta Vinicius de Moraes, os companheiros do Partido dos Trabalhadores (PT), teoricamente tão atentos às agruras da realidade nacional, constataram as condições desumanas de vida dos presidiários brasileiros. Usando uma gíria jocosa em voga nos anos 60 nos "bacuraus" da Praça do Rotary, em Campina Grande (PB), "estão descobrindo o Brasil de bicicleta".
Ninguém jamais precisou passar uma noite que fosse numa cela de prisão no Brasil para saber que, ao contrário do que se diz, esta não é uma sucursal do inferno, mas o reino de Satã é que deve ser um posto avançado de qualquer uma delas.
Tudo começou com o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo. Em palestra para empresários em São Paulo, na semana passada, ele disse que preferia morrer a cumprir uma pena longa em cadeias nacionais. Trata-se, evidentemente, de uma hipérbole descabida. Só um suicida prefere a morte a uma dificuldade qualquer, e na certa este não é o caso.
E o que, com a devida vênia, parece ter acionado o alerta dele não foi um súbito amor aos pretos, pobres e prostitutas que povoam nossas infectas celas comuns, mas a perspectiva de alguns de seus mais ilustres colegas de filiação partidária virem a passar uma temporada no inferno prisional brasileiro.
Pois é. Contrariando quaisquer expectativas no panorama da impunidade generalizada no Brasil, o ex-chefe da Casa Civil de Lula José Dirceu, o ex-presidente nacional do PT José Genoino e o ex-tesoureiro do partido Delúbio Soares foram condenados por corrupção ativa e formação de quadrilha. Se não houver nenhum acidente de percurso, o primeiro terá de cumprir pena em regime fechado ao longo de, pelo menos, um ano e dez meses.
Ora, ora, em princípio, o zelo do ministro solidário parece exagerado: se bicheiros e chefões de quadrilhas de traficantes cumprem pena em pleno conforto no regime excludente que reproduz atrás das grades as injustiças sociais dos inocentes de fora, por que Dirceu seria exceção?
Como os bicheiros do Rio, os criminosos de colarinho branco de Brasília e os chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC), o homem definido como o chefe da quadrilha dos "mensaleiros" disporá de todas as garantias de vida e tranquila segurança em nosso Arquipélago Gulag, com suas ilhas de bem-estar no mar de miséria e sordidez.
Pelo que deixa vislumbrar o estilo de vida de bons vinhos e charutos cubanos em condomínio de luxo, o primeiro réu do núcleo político do escândalo de corrupção em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) tem dinheiro, poder e prestígio para transformar os 22 meses de seu regime fechado num retiro forçado de leitura, repouso e reflexão, que podem até vir a calhar.
Nem o gosto exacerbado pela ironia deste escriba poderá negar-lhe o desconforto óbvio da privação da liberdade, a cessação do fundamental direito constitucional de ir a vir. Mas o Estado brasileiro, de cuja máquina burocrática detém o controle permitido pelo competente aparelhamento executado no primeiro governo Lula, do qual foi dignitário do topo e de ponta, não lhe negará o que permite aos criminosos comuns.
Se, como reconheceu Cardozo em outra declaração, os quadrilheiros do crime organizado comandam hordas de bandidos nas ruas, por que o mais bem-sucedido lobista do Brasil terá silenciada sua voz de comando no interior dos muros do presídio?
No reino de faz da conta da República tupiniquim, não faltará quem faça o possível para reduzir as agruras dele no cárcere. O ex-companheiro Paulo de Tarso Venceslau, que arriscou a própria vida participando do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick para libertá-lo das masmorras da ditadura, onde muitos conheceram a morte, por exemplo, já lhe garantiu publicamente a remessa de um charuto (nacional) por dia enquanto ele estiver cumprindo pena.
Embora nunca o próprio Dirceu lhe tenha mandado um cigarrinho que fosse no tempo que ele passou em prisões desumanas.
O noticiário posterior à condenação de Dirceu não deixa dúvidas quanto a isso. O ministro Cardozo puxou o rosário das lamentações sem dar a mínima atenção ao fato de ser um dos maiores responsáveis pela calamidade pública do sistema prisional brasileiro, contra a qual clamam organismos internacionais de direitos humanos.
Se reclamou da condição "medieval" (esta é a palavra da moda) das prisões, embora tenha usado apenas um quinto do que dispunha no orçamento para melhorar as penitenciárias, o que impedirá Sua Excelência de impedir que o "herói da resistência à ditadura" seja submetido a algum vexame em sua cela?
Outro figurão da República que certamente fará o possível para poupar o ex-chefe da Casa Civil de desconfortos será o ministro Dias Toffoli, dono do voto que levou à mais dura condenação, pelo STF, de um parlamentar, o deputado Natan Donadon (PMDB-RO). Revoltado contra a imposição da pena pesada ao ex-chefe, por cuja absolvição votou, seguindo o revisor, Ricardo Lewandowski, o mesmo delfim do Supremo comparou as punições aplicadas ao período da Inquisição.
Apesar da mão pesada que usou, há apenas dois anos, contra um integrante do baixo clero no Congresso por crime bem semelhante, o ex-chefe da Advocacia-Geral da União no governo Lula usou o mesmo tom do manifesto petista contra o STF e defendeu a imposição de penas financeiras, pois, segundo ele, não atenta contra o Estado Democrático de Direito quem comete crimes só para amealhar o "vil metal", ainda que público.
A própria presidente Dilma Rousseff engrossou o cordão dos misericordiosos ao completar sua declaração óbvia ao jornal espanhol El País de que acata as decisões da cúpula do Poder Judiciário com a observação de que ninguém estaria "acima dos erros e das paixões humanas".
Ai, que dó! Os romanos já sabiam disso quando reconheceram que "errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico". É para isso que existe a justiça dos homens: quem erra e põe as paixões acima da razão deve pagar pelos erros, para não reincidir na falta e servir de exemplo.
21 de novembro de 2012
José Nêumanne
O Estado de São Paulo
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