Não surpreende a sem cerimônia com que o Congresso se prepara para eleger presidentes de suas duas Casas um deputado e um senador cujas trajetórias colidem com o decoro formalmente exigido para o exercício da atividade parlamentar.
A razão da naturalidade é a pior possível: o Parlamento não se dá ao respeito e isso não causa espanto nem move forças suficientes para mudar o curso da triste história.
A menos que o inesperado faça uma surpresa, daqui a duas semanas Henrique Eduardo Alves e Renan Calheiros serão os escolhidos para presidir a Câmara e o Senado, respectivamente, pelos próximos dois anos.
Ungido por força de um acordo de rodízio entre PT e PMDB firmado ainda no governo Lula, na reta final Alves está envolto em atmosfera de irregularidades relativas à destinação de emendas e verbas de representação parlamentar.
Antes, em 2002, havia sido obrigado a abrir mão da candidatura de vice-presidente da chapa de José Serra em decorrência de informações dadas pela ex-mulher, Mônica Azambuja, em processo de divórcio litigioso, sobre depósitos de R$ 15 milhões em contas sem a devida declaração, em paraísos fiscais mundo afora.
No quesito folha corrida, Calheiros quase chega a dispensar apresentação. É alvo de investigações por crime ambiental, é suspeito de comandar emissoras de rádio por meio de testas de ferro, em 2007 foi processado por falta de decoro parlamentar porque uma empreiteira pagou a pensão da filha que teve com a jornalista Mônica Veloso, na ocasião apresentou documentos fraudulentos ao Senado para comprovar rendimentos e finalmente renunciou à presidência da Casa em troca da manutenção do mandato.
A maioria dos senadores aceitou o escambo e o inocentou na votação secreta em plenário. A maioria, agora, ao que tudo indica, não vê nada demais em reconduzi-lo ao posto para cujo exercício era tido como moralmente impedido há seis anos.
Tanto tem consciência do disparate, que Calheiros é candidato na condição de sujeito oculto: ainda não se lançou oficialmente para reduzir o tempo de exposição a eventuais protestos.
Ao que se vê, no entanto, medida cautelar desnecessária, pois a despeito de resistências aqui e ali e de tentativas de apresentar candidaturas alternativas, não há disposição, interesse, força nem capacidade para reações.
E que não se culpe Henrique Alves ou Renan Calheiros por almejarem posições para as quais se exigiria o cumprimento estrito do manual da boa conduta. Ambos jogam para o futuro de suas carreiras nos Estados de origem, Rio Grande do Norte e Alagoas, territórios dominados e desprovidos de massa crítica.
O problema aí não é de quem pleiteia, mas de quem aceita de boa vontade e compactua com o pleito: governo e Congresso.
Ao Planalto pode até desconfortar o excesso de poder nas mãos do PMDB, partido de Alves e Calheiros. Mas, convenhamos, não desagrada que os dois eleitos sejam líderes feridos, sem a plenitude da credibilidade.
Já o Congresso não vota o Orçamento, defende mandatos de condenados, não examina vetos presidenciais, faz troça do instituto da CPI, deixa o governo pintar e bordar com medidas provisórias, debita na conta do contribuinte imposto de renda devido por suas excelências, só se mobiliza em defesa dos próprios privilégios, submete-se ao Executivo em troca de qualquer cafuné.
Sendo assim, nada de novo no front: Alves e Calheiros são comandantes à altura de um Parlamento em situação falimentar.
Fantasia chavista. Barack Obama tomou posse ontem de seu segundo mandato. Que diria o mundo se, doente, internado em outro país, o presidente dos Estados Unidos fosse considerado empossado em regime de continuidade com o aval da Suprema Corte sob a justificativa de que a norma constitucional é mera formalidade?
22 de janeiro de 2013
Dora Kramer - O Estado de S.Paulo
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