"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 19 de março de 2013

DOSSIÊ SECRETO ARGENTINO TENTOU IMPEDIR A ELEIÇÃO DO NOVO PAPA

A jogada, que teve como principal articulador um conhecido diplomata peronista, foi revelada pelo jornal ‘El cronista’
 
 

Cristina Kirchner entrega presente ao Papa, ex-arcebispo de Buenos Aires
Foto: - / AFP
Cristina Kirchner entrega presente ao Papa, ex-arcebispo de Buenos Aires- / AFP

BUENOS AIRES — As dúvidas sobre o papel de Jorge Mario Bergoglio durante a ditadura que comandou a Argentina entre 1976 e 1983 indicam que o primeiro Pontífice latino-americano pode estar no centro de uma campanha política movida pelo kirchnerismo. A revelação foi feita pela colunista Mary Anastasia O’Grady, do jornal “Wall Street Journal”. Defensores do novo Papa afirmam que ele usava seus contatos no regime militar para proteger dissidentes procurados, numa atuação semelhante à do cardeal brasileiro dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio entre 1971 e 2001.
Segundo O’Grady, a campanha kirchnerista contra o Papa Francisco é protagonizada por aliados da Casa Rosada, como o jornalista Horacio Verbitsky, ex-guerrilheiro do grupo Montoneros e hoje editor do jornal pró-governo “Página 12”. Ele é autor de um livro com acusações contra Bergoglio e estaria interessado em manter a aliança com a presidente Cristina Kirchner em troca da propaganda estatal que mantém o diário, afirma a jornalista americana.

“(As suspeitas sobre Bergoglio) são propaganda. Os únicos jornais que não correm o risco da ruína financeira são aqueles sob controle do Estado e aqueles que se sustentam através de anúncios estatais, como o ‘Página 12’. Os argentinos o chamam de ‘a gazeta oficial’”, escreveu nesta segunda-feira Mary Anastasia O’Grady, especializada na cobertura da América Latina.

Segundo ela, apesar da explosão de orgulho pela escolha do Papa, os argentinos sofreram uma perda com a mudança do arcebispo de Buenos Aires para o Vaticano: a de um feroz crítico da corrupção no governo de Cristina. A Casa Rosada, alega, teme que a exposição internacional do Papa Francisco leve aos holofotes “os inimigos que não endossam o tipo de autoritarismo” dos Kirchner.

A ideia de uma cruzada do governo argentino contra o Papa ganhou reforço com a denúncia do jornal “El Cronista”. Segundo a publicação, o embaixador da Argentina no Vaticano entregou a um cardeal - supostamente Leonardo Sandri - um dossiê contra o então arcebispo de Buenos Aires, baseado nas acusações feitas por Verbitsky em seu livro “O Silêncio”, publicado em 2005. Verbitsky alega que Bergoglio teria “retirado a proteção” da Igreja a dois padres jesuítas, Orlando Yorio e Francisco Jalics, que faziam trabalho social com comunidades carentes de Buenos Aires, e acabaram sequestrados e torturados pela ditadura.

Essas acusações são negadas pelo próprio Bergoglio em “O Jesuíta”, publicado em 2010. O hoje Papa Francisco revelou ter emprestado seus documentos à fuga de um dissidente. E contou que, algumas vezes, buscou celebrar missas onde sabia que estariam presentes os chefes da Junta Militar da Argentina. Depois da celebração, agia:

“Pedia para falar com Videla, pensando em averiguar o paradeiro dos padres detidos”, disse.

As acusações do envolvimento da Igreja com a ditadura vão e vêm. Em 2012, os bispos argentinos chegaram a pedir desculpas pela “incapacidade de proteger os fiéis durante o período da ditadura”. Defensores de Bergoglio atestam que alguns integrantes da cúpula da Igreja optaram por fazer manobras pessoais junto aos militares - e não condenações públicas.

Quatro mil fugitivos em 80 apartamentos

É um papel bastante semelhante ao de dom Eugênio Sales, que preferiu agir nos bastidores em defesa dos perseguidos. Ele montou uma rede de proteção que abrigou no Rio mais de quatro mil perseguidos pelos regimes do Cone Sul, entre 1976 e 1982, em 80 apartamentos bancados por ele mesmo em 14 bairros da cidade. A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios - história revelada pelo jornalista José Casado, do GLOBO, em 2008.

Desde 1976, quando um jovem bateu à porta do Palácio São Joaquim, escritório e residência de dom Eugênio, na Glória, o cardeal passou a usar seus elos com os militares. Para salvar vidas. Sem documentos, o jovem dizia-se refugiado do regime argentino. Dom Eugênio hesitou, mas se convenceu da necessidade de ajudar. E ligou para o general Sylvio Frota, então ministro do Exército.

- Chamei o Frota no telefone vermelho (...) e falei: ‘Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, sou o responsável. Ponto final’ - recordou dom Eugênio, em 2008.

Ele mandou, então, abrir os cofres da Arquidiocese. Liberou dinheiro para gastos pessoais, assistência médica e jurídica de seus protegidos. A única exigência era o silêncio absoluto:

- Eu não tinha e nem nunca tive interesse em divulgar nada disso. Queria que as coisas funcionassem, e o caminho naquele momento era esse, o caminho de não pisar no pé (do governo) - contou o cardeal poucos anos antes de morrer, no ano passado.

19 de março de 2013
 O Globo

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