Em outubro do ano passado, comentei antecipadamente uma decisão racista de Marta Suplicy, ministra da Cultura. Na ocasião, em comemoração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), a ministra lançou editais para beneficiar apenas produtores e criadores negros. "É para negros serem prestigiados na criação, e não apenas na temática. É para premiar o criador negro, seja como ator, seja como diretor ou como dançarino", disse então a ministra à Folha de São Paulo.
Curiosamente, a decisão foi tomada em reunião em Brasília com a ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Estranha igualdade racial que exclui brancos e mulatos da participação nos editais. Para Nuno Coelho de Alcântara, da Fundação Cultural Palmares, instituição ligada ao MinC para promover e preservar a cultura afro-brasileira, um edital que condicione a seleção à raça do criador ou produtor pode "fomentar o preconceito racial".
Alcântara foi modesto. Pode fomentar o preconceito racial? Não é que possa fomentar. É claro que fomenta o preconceito racial. Como desde há muito vem fomentando – não o preconceito racial, mas o ódio racial – a política de cotas na universidade. Qual branco vai olhar com carinho um negro que lhe roubou a vaga na universidade só porque sua pele é negra?
Nesta segunda-feira, a Justiça Federal do Maranhão suspendeu os editais de Dona Marta, por entender que eles representam uma prática racista. Com um valor total de R$ 9 milhões, os editais foram, até agora, a principal novidade da gestão de Marta Suplicy à frente da pasta, que assumiu há cerca de nove meses prometendo políticas de inclusão.
Os editais suspensos foram: Apoio para Curta-Metragem — Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual; Prêmio Funarte de Arte Negra; Apoio de Coedição de Livros de Autores Negros; e Apoio a Pesquisadores Negros. O primeiro é de gestão da Secretaria do Audiovisual (SAv) do MinC, o segundo, da Funarte, e os dois últimos, da Fundação Biblioteca Nacional. A afrodescendentada chiou:
— O racismo no Brasil em relação ao negro é uma questão histórica — avalia Antonio Costa Neto, assistente técnico do IARA. — Houve racismo durante a escravidão, posteriormente com a teoria de branquear a população e depois como política pública na educação e também na imigração. Então hoje tentamos desconstruir o racismo através de políticas públicas afirmativas. O magistrado leva em consideração o momento atual, que não admite prática de racismo, mas deve considerar também esses fatos históricos. Se fizermos um recorte racial, há poucos produtores negros com acesso a essas política públicas.
Os negros sempre apelam à escravidão, instituição abolida há mais de século no país, como se até hoje fossem escravos. Da abolição para cá, nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça.
No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos.
No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.
Nada disso existiu no Brasil no século passado. Que os negros egressos da escravidão tenham tido dificuldades para entrar no mercado de trabalho, entende-se. Tinham escassa ou nenhuma instrução e, de início, o estigma da escravatura ainda imperava. Nada disso ocorre mais. Negro não é impedido de ocupar nenhum cargo e mais: um dos personagens hoje mais celebrado pela imprensa e até mesmo cotado para a Presidência da República é um negro racista, autoritário e desbocado.
Há horas venho afirmando. Os antigos profissionais da luta de classes, ao perderem a antiga bandeira, precisavam de uma nova. Se hoje se tornou obsoleto falar em burguesia e proletariado, cria-se uma cisão entre brancos e negros, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais. Se não existe ódio entre uns e outros, é preciso criá-lo. Luta de classes morta, luta racial posta.
Comentaristas desinformados, que parecem não ler jornais, disseram então que Dona Marta estava oficializando o racismo no Brasil.
Nada disso! O racismo foi oficializado dia 26 de abril daquele ano, seis meses antes dos editais do Minc, quando a suprema corte judiciária do país o legalizou, por unanimidade, no país. Naquela data, o STF revogou, com a tranqüilidade dos justos, o art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. A partir de então, tornou-se legal a prática perversa instituída por várias universidades, de considerar que negros valem mais do que um branco na hora do vestibular. Parafraseando Pessoa: constituições são papéis pintados com tinta. Que podem ser rasgados ao sabor das ideologias.
Os considerandos a favor do racismo são vários. Segundo o ministro Cezar Peluso, “há graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso aos negros às fontes da educação”. Como se não houvesse barreiras institucionais também para os brancos. Se o vestibular barra negros, barra também brancos, amarelos, verdes ou azuis. “É preciso desfazer a injustiça histórica de que os negros são vítimas no Brasil”, continuou o ministro. Como se os milhões de brancos que vivem na miséria não fossem vítimas de injustiças históricas.
Segundo a decisão do juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara Federal do Maranhão, o ministério "não poderia excluir sumariamente as demais etnias" de seus editais e determinou "a imediata sustação de todo e qualquer ato de execução dos concursos que estejam relacionados" a eles.
Ainda segundo a decisão, a criação de editais para criadores e produtores negros "não pode servir de pretexto para a estruturação estatal de guetos culturais, que provoquem, por intermédio de ações com o timbre da exclusividade, o isolamento dos negros, colocando-os em compartimentos segregacionistas".
Finalmente uma decisão sensata oriunda da Justiça, depois que o STF rasgou serenamente a Constituição. O juiz maranhense será devidamente anatematizado como racista. Aliás, já o foi – indiretamente – pela ministra da Cultura. Que deve recorrer. E o recurso cairá forçosamente nas mãos dos senhores ministros que instituíram legalmente o racismo no Brasil no ano passado.
terça-feira, maio 21, 2013
As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. É espantoso ver ainda nos dias de hoje – quase um século após a Revolução de 1917, 24 anos após a queda do Muro, 22 anos após o desmoronamento da União Soviética – quem ainda defenda o socialismo. No entanto, aí estão. Devo ser um dos únicos jornalistas no Brasil – se não o único – que leu Panaïti Istrati, o escritor romeno de expressão francesa, que em 1928 viajou pela União Soviética com o escritor cretense Nikos Kazantzakis.
Foram de Kiev a Moscou, de Leningrado a Murmansk, através do Cáucaso e da Armênia. Ambos viam miséria por todo lado. Depois, sozinho, Kazantzakis segue da Sibéria até Vladivostok e Turquistão. O cretense, um deslumbrado que tinha como ídolos figuras tão díspares como Cristo, Lênin e Buda, dizia que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Já Istrati, com sua desconfiança inata de camponês, dizia só ver ovos quebrados e nada de omelete.
Em 1929, Istrati publica Vers l’autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. A recusa ao novo dogma é tão traumática que, tendo seu livro publicado em Paris, naquele ano, uma segunda edição só surgiria na mesma cidade em 1980. Suas Obras Completas são publicadas pela Gallimard, exceto Vers l’autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:
“Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”.
Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis, que acaba abandonando sua teoria da omelete. No relato de sua peregrinação à Rússia — Voyages — Russie —, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.
Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.
Não há apenas um Livro — acrescentaríamos —, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos — diz Kazantzakis — deste grande momento em que nasce uma nova religião”. Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado — diz Camus tentando entender o marxismo — “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.
Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté:
“O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.
“A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.
A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.
Desde então, décadas rolaram sob as pontes. Houve os gulags (que datam de 1918, é bom lembrar), as primeiras purgas de 1935, o pacto Stalin/von Ribbentrop, de 1939, a affaire Lyssenko, de 1949, e o XX Congresso do PCUS, em 1956, année-charnière. Interrompido o sonho quiliasta dos intelectuais deste século, o final dos anos 50 assistiu a um congestionamento na estrada de Damasco. Não poucos escritores refizeram ou tentaram refazer suas obras, renegaram livros e suprimiram poemas de suas antologias.
No Brasil, silêncio profundo. Não temos, na história das idéias do país, polêmicas férteis como a de D’Astier de la Vigerie com Albert Camus, as affaires Lyssenko e Kravchenko, os depoimentos de Panaïti Istrati sobre a União Soviética, as reflexões de Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender em Le Dieu des ténébres.
Os livros citados de Panaïti e Kazantzakis jamais foram publicados no Brasil. O de Camus, que saiu na França em 1951, só foi traduzido entre nós em 1996, quase meio século depois, quando a denúncia do autor já era supérflua. Graças ao stalinismo que grassou subterraneamente na cultura nacional, gerações e gerações ignoraram o que ocorria do outro lado dos Urais.
Intelectuais e professores que fizeram suas carreiras montados no marxismo não ousam afirmar que só escreveram bobagens a vida inteira. A bicicleta precisa continuar andando. Os últimos comunossauros do século ainda pastam nos campi do país.
27 de maio de 2013
janer cristaldo
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