Uma das premissas mais difundidas no meio econômico é que indivíduos são seres racionais em busca da maximização de resultados. Mesmo os economistas que apontam as falhas de governo costumam partir dessa premissa, mostrando apenas que os incentivos no meio político levam a escolhas ruins, ainda que tomadas por seres racionais. Mas Bryan Caplan, em seu instigante livro “The Myth of the Rational Voter”, questiona a própria premissa em si, alegando que eleitores não são máquinas de cálculo racionais, e sim pessoas com crenças enviesadas que acabam potencializadas no mecanismo democrático.
O ponto de partida de Caplan é que os eleitores não são somente ignorantes acerca da política; eles são irracionais. Diversas crenças acompanham os eleitores desde cedo, e tais crenças prevalecem porque, de certa forma, fazem com que eles se sintam bem ao defendê-las. Muitos economistas justificam a ignorância voluntária sobre política com base no argumento de que um voto não faz diferença e, portanto, seria racional ignorar a política. Caplan vai um passo além e questiona: por que os eleitores controlariam suas reações emocionais e ideológicas — o que demanda bastante esforço e reflexão dolorosa muitas vezes — se o voto não altera o resultado?
A visão de Caplan é que a democracia falha porque ela atende aos anseios das pessoas. Winston Churchill cunhou a famosa frase em defesa da democracia, alegando que se trata da pior forma de governo, exceto todas as demais já tentadas. Mas essa defesa nada diz sobre o escopo da democracia. Talvez, para muitas coisas públicas, o método democrático seja mesmo o menos pior. Mas, e se inúmeras outras decisões simplesmente não precisarem transitar pelo meio político, porque não cabe à maioria decidir? A alternativa à democracia não precisa ser a ditadura; pode ser muito bem mais mercado.
Muitos defendem a democracia com base no conceito de teoria dos grandes números, assumindo que os erros individuais acabam eliminados quando agregados. O problema, segundo Caplan, é quando ocorrem erros sistemáticos dos eleitores. E eis justamente um dos principais pontos do livro: a maioria dos eleitores possui crenças enviesadas. Há um claro viés antimercado, por exemplo: poucos compreendem e aceitam o conceito abstrato de “mão invisível” dos mercados, com sua capacidade de harmonizar interesses privados em prol de um bem público. Adam Smith mesmo sabia que era algo contraintuitivo, e por isso escreveu um grande livro para defender sua visão.
As pessoas gostam de pensar que valorizam a verdade por si própria, mas existem impulsos concorrentes, como o medo, a preguiça de raciocinar, a vaidade, os preconceitos. Da mesma forma que acontece com crenças religiosas, muitos suspendem a razão quando alimentam sua fé ideológica. O desejo de acreditar é mais forte que a busca pela verdade. Muitos encontram em suas visões políticas modernas o conforto semelhante ao das religiões no passado. Para muitos, por exemplo, atacar os estrangeiros, como se o comércio fosse uma batalha de soma zero, produz certo conforto e orgulho. Essas mesmas pessoas podem expressar nas atitudes de seu cotidiano algo diferente, quando compram produtos importados de acordo com seu julgamento de custo e benefício. Mas no momento do voto, acabam sucumbindo ao prazer mental de defender o protecionismo.
Como um voto não muda o resultado, os eleitores acabam optando pela busca de prazer ideológico, mesmo que o resultado agregado dessa postura seja prejudicial à maioria. O custo individual de acreditar politicamente naquilo que mais lhe dá prazer é muito baixo. Caplan acredita, inclusive, que os eleitores votam genuinamente de acordo com aquilo que percebem ser o melhor para o coletivo. O problema é que poucos adotam o passo seguinte, de questionar seriamente se tais meios são os mais eficientes para gerar os resultados esperados. O erro pode ser sedutor, e os políticos que oferecem a ilusão se tornam mais populares.
A imprensa não cria tais ilusões, que já existiam antes do surgimento dos meios de comunicação de massa. Mas elas podem atuar como catalisadores, servindo aos interesses dos líderes populistas. A audiência já está predisposta a ouvir aquilo que a imprensa e os políticos oferecem. As pessoas são perfeitamente capazes de se enganar sem a ajuda de jornalistas. Podemos analisar o exemplo do viés pessimista para ilustrar o ponto. David Hume já sabia que o hábito de condenar o presente e idealizar o passado estava bastante arraigado na natureza humana. A despeito do avanço material fantástico dos últimos séculos, muitos costumam temer um futuro apocalíptico para a economia, com fim de recursos, miséria, desemprego etc. A Bíblia, Nostradamus, Malthus, o Clube de Roma, a lista de previsões sombrias é vasta, e o público parece inclinado a buscá-las. A imprensa, na missão de atender a demanda do público, faz um excelente trabalho de recortes pessimistas, criando uma sensação de pânico. Os políticos se aproveitam deste ambiente, que subestima o progresso econômico e superestima os riscos e problemas.
Se eleitores são irracionais, por que consumidores não seriam também? Caplan entende que os incentivos são bastante diferentes nos dois casos. Na democracia há total incentivo para agir de maneira a gerar a maior satisfação mental com as escolhas, uma vez que seu voto não altera o resultado. Já no mercado, os consumidores são incentivados a agir de forma mais racional. Isso não é garantia de racionalidade, naturalmente. Mas quando o consumidor precisa colocar nos atos suas palavras, é ele quem paga o preço. Basta pensar no exemplo do protecionismo: ele pode comprar um produto nacional, pior e mais caro, para se sentir bem como um patriota; mas isso poderá lhe custar caro. O efeito é direto sobre ele. É justamente por isso que vemos tanta contradição entre discursos políticos e práticas consumistas. Os mesmos que atacam o progresso tecnológico como destruidor de empregos em seus discursos, entendem que fazer mais com menos em seus trabalhos é algo positivo, pois sobra mais tempo para investir em outras atividades, como o lazer. O custo individual de ser um ludista na política é quase nulo, enquanto o custo individual de rejeitar o avanço tecnológico no mercado é absurdamente elevado.
Muitos economistas são acusados de “fundamentalismo de mercado”. Caplan acredita que a acusação é uma caricatura. À exceção de alguns poucos libertários mais fanáticos, a imensa maioria dos economistas aceita a existência das falhas de mercado. Os próprios economistas costumam apontar tais falhas e praticar a autocrítica. Milton Friedman, por exemplo, era o primeiro a reconhecer diversas falhas no funcionamento dos mercados, e sabia que a alternativa muitas vezes era entre o menor dos males. Quase ninguém afirma que os mercados são perfeitos, e ninguém do mainstream da economia o faz. A questão, porém, é partir dessa premissa verdadeira, de falha dos mercados, e concluir que a alternativa será sempre desejável e melhor. Os que agem assim, segundo Caplan, são os “democratas fundamentalistas”, que pensam que qualquer defeito econômico pode ser resolvido com mais democracia.
Para Caplan, esses fundamentalistas não são ridicularizados porque existem em grande número. Se alguém atacar Zeus numa reunião, ninguém vai reclamar; mas se atacar Cristo, poderá despertar a revolta de muitos. De forma similar, ridicularizar o “fundamentalismo de mercado” é fácil, pois seus adeptos são muito escassos. Mas atacar os “democratas fundamentalistas” costuma gerar forte reação, pois eles existem em grande quantidade. Acontece que a democracia não é uma panaceia, e como mostra Caplan, ela pode incentivar o comportamento irracional dos eleitores, produzindo resultados ineficientes. Isso não quer dizer que a solução seja uma ditadura.
No passado, a religião sempre foi assunto de estado, ou seja, sujeito à escolha da maioria e depois imposto aos demais. Atualmente, vimos a despolitização da religião, que passou a ser da esfera individual. A maioria não mais controla a crença religiosa de todos. Assim como a religião, muitos outros assuntos poderiam ser despolitizados, ou seja, retirados da esfera pública e transferidos para o âmbito particular. Só porque alguma democracia é necessária para certos assuntos públicos, isso não quer dizer que não devemos ter menos democracia quando o tema em questão não diz respeito ao público em geral. A mistura ótima entre mercado e governo não depende nas virtudes absolutas do mercado, mas sim de suas virtudes comparadas àquelas do governo. Politizar tudo é o caminho da ineficiência e da servidão.
03 de julho de 2013
Rodrigo Constantino
* Publicado originalmente em 23/05/2011.
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