"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 3 de julho de 2013

"O CONTO DO CORTE SOCIAL"

Deve datar da Grécia Antiga o golpe retórico que pretende desviar de seu curso natural o debate público que vinha deixando um dos participantes em má situação. A mistificação consiste em atribuir ao oponente intenções impopulares que em momento algum ele mencionara - para então desmenti-las com uma veemência comensurável com a falsa acusação.

Pois foi a esse recurso de evidente má-fé que a presidente Dilma Rousseff apelou ao dar uma inusitada entrevista em meio à reunião ministerial de anteontem na Granja do Torto.
O encontro visava, alegadamente, a mobilizar a equipe em torno dos cinco "pactos federativos" que ela anunciara na semana passada como prova de ter ouvido e entendido as vozes da rua.

Com estudado bom humor e cordialidade - para surpresa de ministros e jornalistas que conhecem a cara de poucos amigos e a rispidez com que ela costuma tratar os interlocutores -, Dilma enxertou na sua fala sobre a política de dispêndios da administração que dirige a advertência fulminante: "Cortar Bolsa Família jamais".
Por via das dúvidas, ou caso alguém não tivesse entendido direito, emendou: "Não esperem de mim reduzir gasto social. Não há hipótese disso". Se um viajante recém-chegado de Marte topasse com tão assertivas palavras, não se poderia criticá-lo por imaginar que as oposições ou, quem sabe, até mesmo os brasileiros que em menos de um mês despojaram a presidente de 27 pontos de popularidade e de outros 21 na liderança das pesquisas eleitorais estão clamando por uma cirurgia no Bolsa Família
Ao tomar conhecimento do show de determinação no Torto, a parcela insuficientemente informada da sociedade - cuja participação na queda do prestígio e da intenção de voto na presidente, embora menos intensa do que a dos setores mais escolarizados e de maior renda, decerto foi especialmente dura de engolir para Dilma - talvez tenha sido levada a crer, a exemplo do imaginário extraterrestre, que ela resistia heroicamente a pressões subterrâneas das elites para passar a foice no orçamento social do Executivo.
Está claro que a presidente, com essa enganação, desejava em primeiro lugar recuperar os pontos perdidos com os beneficiários cuja lealdade fraquejou nas últimas semanas.
Nesse cenário, o fantasioso encolhimento do Bolsa Família faria as vezes do "inimigo externo" a que se agarram governantes de todo tipo em tempos de crise para recobrar o apoio esgarçado.
Ficasse nisso, a armação já teria sido de bom tamanho. Mas, pouco antes, Dilma já tinha achado oportuno dar uma indireta no governador tucano de São Paulo, Geraldo Alckmin, que na semana passada mandou cortar R$ 350 milhões em gastos de custeio do Estado e extinguiu uma das suas 26 Secretarias.
"Eu não farei demagogia de cortar cargos que não ocupo. Se não ocupo, não gasto", disse ela, demagogicamente, numa alusão aos postos não preenchidos no disforme corpanzil federal de 39 Ministérios e 22 mil ocupantes de cargos de confiança.
"Eu tentarei olhar de onde e de que setor é possível fazer ajustes", tentou prometer.
A embromação presidencial é imitada no primeiro escalão. A área econômica - onde não há "mudança à vista", assegurou Dilma - fez saber que prepara um bloqueio de até R$ 20 bilhões nas despesas governamentais, a se somar aos R$ 28 bilhões de fins de maio.
Ocorre que o contingenciamento é imposição da Lei de Responsabilidade Fiscal: o que sai do erário deve se ajustar ao que nele entra. Com a arrecadação em baixa devido ao fraco nível da atividade econômica, o governo literalmente não faz mais que uma obrigação legal ao suspender gastos programados.
Mas não passa pela cabeça de Mantega & Cia deixar de lado a "contabilidade criativa" para fechar o exercício com superávit primário. Como já fizeram com o BNDES, tomarão dividendos antecipados da Caixa Econômica Federal, em troca de uma injeção de R$ 8 bilhões em títulos públicos. (No caso do Banco, foram R$ 15 bilhões.) E a presidente ainda se permite dizer que o seu governo "é padrão Felipão".
Além de ser uma tosca tentativa de se associar à conquista do tetra na Copa das Confederações, é uma ofensa ao grande treinador. A sua seleção acaba de golear a da Espanha, a melhor do mundo. O time de Dilma não ganha uma.
03 de julho de 2013
Editorial do Estadão
 

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