O bilionário fundador da
Microsoft, Bill Gates, ganha dinheiro tão rapidamente que pode fazer mau negócio
se parar para pegar uma nota de US$ 100 que encontre no chão. Numa sociedade com
desigualdade crescente como a americana, é justo que Gates ganhe tanto assim?
Não seria bom para todos cobrar dele mais impostos, a fim de melhorar a situação
dos pobres? Mas transferir para outros o dinheiro que Gates ganha legalmente não
equivaleria a obrigá-lo a trabalhar de graça, algo que a sociedade decidiu há
muito tempo acabar, ao abolir a escravidão? Se as perguntas despertam em você a
vontade de argumentar, aqui vai uma dica: não há resposta
certa.
Dissecar dilemas morais e
éticos como esse, sem nenhuma preocupação em definir o lado certo e o errado, é
um dos programas de verão mais disputados por estudantes da Universidade
Harvard, nos Estados Unidos, desde 2004. À frente da classe, com a mão firme de
um cirurgião revelando camadas e mais camadas de cada questão proposta, está
Michael Sandel, filósofo, escritor, palestrante, fenômeno de popularidade e –
seu papel mais importante – professor que consegue níveis impressionantes de
atenção e participação dos alunos.
O curso ministrado por Sandel
foi o primeiro da história a ser publicado em vídeo integralmente por Harvard na
internet, há três anos. Apelidado de Justice, ou Justiça (seu nome é Razão moral
22), ganhou um site próprio, e as 12 aulas ministradas em 2005 foram
reproduzidas no YouTube. A primeira delas, que questiona se um assassinato pode
ou não ser moral a depender de seus fins, foi clicada mais de 3,7 milhões de
vezes. Se todos os visitantes virtuais a assistem, isso significa que a aula de
filosofia chega a um público equivalente a 100 turmas diárias de 40
pessoas.
Ao publicar os vídeos, Harvard
apenas reagiu a uma demanda sem precedentes. Desde o início dos anos 2000, havia
regularmente mais de 1.000 alunos interessados pelo curso de Sandel, numa
universidade em que um quinto desse total já significaria uma procura bem
grande. Em 2007, Sandel bateu o recorde de Harvard, com 1.115 estudantes
matriculados numa disciplina. O curso dura de setembro a janeiro e, ano após
ano, a universidade se vê obrigada a reservar para ele seu maior auditório, o
Sanders Theater, anteriormente aberto só para grandes eventos e discursos de
personalidades, como o ex-premiê soviético Mikhail Gorbachev ou o
primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965). Para 2011 e 2012, a
universidade limitou a 1.000 o número de matriculados.
As aulas deixaram o professor
famoso e se desdobraram em eventos pagos e lotados – Sandel excursionou por
Japão, Coreia do Sul e China, onde foi considerado “a mais influente
personalidade estrangeira” de 2010 pela edição local da revista Newsweek. Por
duas vezes, em 2005 e 2010, ele foi uma das estrelas do TED. Neste mês, dará uma
palestra paga na Igreja de Todos os Santos, em Los Angeles, com capacidade para
600 pessoas. O tema será “O limite moral dos mercados”. Em agosto, virá ao
Brasil, a convite da consultoria Amana Key, para falar a empresários,
executivos, funcionários públicos (com ingresso pago) e estudantes
universitários (convidados). “Eu o ouvi em Boston por uma hora. Fiquei
impressionado com o jeito de ele tratar de dilemas cheios de áreas cinzentas,
que exigem capacidade de julgamento muito refinada”, afirma o consultor Oscar
Motomura, responsável pela vinda de Sandel ao Brasil.
O que torna uma aula de
filosofia tão atraente para tanta gente? Sandel vem aperfeiçoando o método há
quase três décadas. Em 1980, aos 27 anos, pouco antes de se tornar doutor por
Oxford, começou a ministrar seu curso de filosofia moral em Harvard. Aos 32,
recebeu um prêmio dado anualmente por um comitê de alunos e professores da
universidade a três mestres que demonstrem “excelência na capacidade de ensino e
preocupação pelos estudantes”. Nos anos 1990, o curso ganhou o formato atual e o
apelido que o tornou célebre, Justiça.
Sandel não tem um carisma
especial, não faz muitas piadas nem usa recursos tecnológicos para chamar a
atenção. Em vez disso, conduz uma aula bem preparada e ensaiada, com uma linha
de raciocínio bem clara. Convida os alunos a participar, individualmente ou em
grupo, o tempo todo, no melhor espírito socrático. Inclui as contribuições e
dúvidas deles no debate e continua a se aprofundar nos dilemas morais e éticos
que propõe. Em momentos-chave das aulas, para lidar com situações específicas,
traz ao palco o pensamento de gigantes como o grego Aristóteles, o alemão
Immanuel Kant ou o americano John Rawls, de maneira simples mas não simplória.
Como resultado, cada aula oferece uma gratificante jornada
intelectual.
Embora o mais importante nas
aulas sejam as questões, é natural que os alunos e os espectadores anseiem por
respostas. Sandel não as fornece facilmente. O curso Justice e o livro que dele
nasceu, Justiça: o que é fazer a coisa certa (2011, Civilização Brasileira, R$
39,90), deixam as respostas em segundo plano e se concentram nas virtudes do
debate e da reflexão. O grande objetivo de Sandel é exortar cada cidadão – aluno
ou internauta – a usar a filosofia como ferramenta para enfrentar seus dilemas e
dúvidas, em vez de fugir deles, e assim tomar decisões melhores no dia a
dia.
O curso todo se desenrola entre
duas grandes arenas de pensamento. De um lado, a importância e a fragilidade da
liberdade individual, a identidade do cidadão, os direitos fundamentais da
pessoa, a força da livre-iniciativa empresarial. Do outro, os direitos difusos,
o bem-estar coletivo, a identidade do grupo e os propósitos comuns a uma
sociedade. Quem acompanha o curso percebe um vislumbre de qual seria a resposta
de Sandel aos problemas que apresenta – a simpatia do professor pende para o
segundo conjunto de valores.
Em seu livro mais recente, What
money can’t buy (O que o dinheiro não pode comprar, ainda sem título em
português, a ser lançado em agosto no Brasil pela Editora Civilização
Brasileira), Sandel faz um alerta sobre o que considera excessos na aceitação
dos interesses egoís¬tas e na transformação do mundo em mercadoria. Ele se opõe
a ideias como as propagadas por seu colega em Harvard, o economista Roland
Fryer, que vê benefícios em recompensar com dinheiro a criança que tira notas
especialmente boas na escola, ou as do ganhador do Nobel de Economia Gary
Becker, que já imaginou a possibilidade de países ricos pagarem a países pobres
para admitirem refugiados em seu lugar.
Os alertas de Sandel encontram
ressonância no sentimento de grande parte da população, especialmente num
momento em que os Estados Unidos mal se recuperam de uma crise nascida no
sistema financeiro. A identidade com uma certa indignação das classes média e
baixa contribui para tornar o pensamento de Sandel mais difundido, mas
certamente não mais original nem provocativo. Se brilha menos como pensador,
Sandel faz história como um espetacular profissional de ensino – e essa
contribuição é mais que se poderia exigir de qualquer filósofo.
13 de junho de 2012
da Época
Nenhum comentário:
Postar um comentário