Estamos cercados por uma indústria que explora a nossa carência
Na minha mesa de trabalho há uma rosa amarela do dia dos namorados. Entraram aqui um fortão e uma loirinha, vestidos de anjo, e deixaram o presente em nome de uma marca de cerveja. Achei engraçado, mas, assim que eles saíram, bateu certa melancolia. Como é fácil banalizar as coisas que nos comovem. Como é simples transformar em clichê – ou babaquice – os sentimentos terríveis que definem a nossa humanidade.
Olhe em volta: estamos cercados pela palavra amor.
Há um milhão de livros com esse título, dez milhões de músicas com esse refrão, centenas de filmes e um batalhão diário de novelas que trata do assunto. Pela quantidade de produtos amorosos que nos oferecem, é inevitável concluir que consumimos mais amor do que cerveja, chocolate e televisores de tela plana. Talvez um pouco menos que celulares.
Nosso apetite por amor não tem limites. Nossa sede de amor jamais acaba. Somos carentes insaciáveis. Sonhamos com o amor todas as noites. Acordamos encharcados de imagens doloridas. Dentro de nós se agita um mar de memórias que tem como centro as nossas experiências de afeto. Velhas, remotíssimas, e recentes. Elas nos movem de forma inconsciente. Somos filhos, somos irmãos, somos amigos, somos amantes, somos pais e mães. Todos nós. A cola que liga todas essas situações é o amor.
Começamos a receber amor ainda minúsculos, nos braços da mãe, e nunca mais paramos. Ele nos constitui emocionalmente, como os músculos e os ossos nos formam fisicamente. É parte essencial de nós e precisa ser reposto, realimentado, revivido a cada dia, a cada momento, em um processo que, a rigor, nunca tem fim.
Um alienígena que chegasse à Terra iria perceber, em dois minutos, nossa abissal vulnerabilidade. Além de água, alimento, abrigo, precisamos desesperadamente de amor - em várias formas, em qualquer forma na verdade. Somos viciados nele. Erguemos nossa vida em torno dele. Do erotismo violento da adolescência aos sentimentos suaves da velhice, nossa existência é uma longa experiência amorosa – ou uma busca desesperada, e muitas vezes cega, muitas vezes infrutífera, pelo amor.
É por isso que me incomoda a banalização comercial do sentimento. Ela me parece uma covardia, quase uma canalhice. Algo como oferecer luz a um cego. Diante do amor, somos todos ingênuos, frágeis, facilmente enganáveis. É simples nos vender qualquer coisa, nos iludir com qualquer promessa. Estamos, desde crianças, atrás da próxima dose dessa droga – e, às vezes, tenho a sensação de estarmos cercado de traficantes que não entregam a mercadoria. Nem poderiam.
Nossos verdadeiros sentimentos são obscuros e sombrios, quase impossíveis de serem saciados. Eles não cabem nos formatos pré-moldados da indústria do amor. Pegue o caso da mulher que matou e destrinchou o marido uns dias atrás. Havia amor ali. Amor na forma de ciúme. Amor próprio. Amor de mãe que temia ser separada da filha. Mas não é disso que a marca de cerveja quer falar no dia dos namorados. A história de Elize Matsunaga precisa de um filme europeu pesado, triste, não comercial, daqueles que nos expulsam da sala de cinema com a mesma força com que mergulham dentro de nós.
Diante do tamanho das nossas necessidades, e da nossa imensa complexidade, a indústria do amor está fadada a nos desapontar. Ela oferece música para um momento de dor, mas mil músicas são incapazes de nos consolar quando acabamos de ser abandonados. Ela nos dá lindas histórias de amor, mas quem pode com elas quando está coberto por um manto intransponível de medo e tristeza?
O paradoxo do amor público, industrial, feliz, multiplicado nas redes sociais e nas salas de Multiplex, é que as nossas experiências realmente importantes são incomunicáveis e intransferíveis. Apesar do estardalhaço social, estamos sozinhos frente ao amor. Cabe a cada um de nós encontrá-lo, vivê-lo ou perdê-lo intimamente. É inevitável gemer sozinho no escuro, cercado de silêncio. O pessoal da rosa amarela não estará disponível se você precisar deles.
13 de junho de 2012
IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA
Olhe em volta: estamos cercados pela palavra amor.
Há um milhão de livros com esse título, dez milhões de músicas com esse refrão, centenas de filmes e um batalhão diário de novelas que trata do assunto. Pela quantidade de produtos amorosos que nos oferecem, é inevitável concluir que consumimos mais amor do que cerveja, chocolate e televisores de tela plana. Talvez um pouco menos que celulares.
Nosso apetite por amor não tem limites. Nossa sede de amor jamais acaba. Somos carentes insaciáveis. Sonhamos com o amor todas as noites. Acordamos encharcados de imagens doloridas. Dentro de nós se agita um mar de memórias que tem como centro as nossas experiências de afeto. Velhas, remotíssimas, e recentes. Elas nos movem de forma inconsciente. Somos filhos, somos irmãos, somos amigos, somos amantes, somos pais e mães. Todos nós. A cola que liga todas essas situações é o amor.
Começamos a receber amor ainda minúsculos, nos braços da mãe, e nunca mais paramos. Ele nos constitui emocionalmente, como os músculos e os ossos nos formam fisicamente. É parte essencial de nós e precisa ser reposto, realimentado, revivido a cada dia, a cada momento, em um processo que, a rigor, nunca tem fim.
Um alienígena que chegasse à Terra iria perceber, em dois minutos, nossa abissal vulnerabilidade. Além de água, alimento, abrigo, precisamos desesperadamente de amor - em várias formas, em qualquer forma na verdade. Somos viciados nele. Erguemos nossa vida em torno dele. Do erotismo violento da adolescência aos sentimentos suaves da velhice, nossa existência é uma longa experiência amorosa – ou uma busca desesperada, e muitas vezes cega, muitas vezes infrutífera, pelo amor.
É por isso que me incomoda a banalização comercial do sentimento. Ela me parece uma covardia, quase uma canalhice. Algo como oferecer luz a um cego. Diante do amor, somos todos ingênuos, frágeis, facilmente enganáveis. É simples nos vender qualquer coisa, nos iludir com qualquer promessa. Estamos, desde crianças, atrás da próxima dose dessa droga – e, às vezes, tenho a sensação de estarmos cercado de traficantes que não entregam a mercadoria. Nem poderiam.
Nossos verdadeiros sentimentos são obscuros e sombrios, quase impossíveis de serem saciados. Eles não cabem nos formatos pré-moldados da indústria do amor. Pegue o caso da mulher que matou e destrinchou o marido uns dias atrás. Havia amor ali. Amor na forma de ciúme. Amor próprio. Amor de mãe que temia ser separada da filha. Mas não é disso que a marca de cerveja quer falar no dia dos namorados. A história de Elize Matsunaga precisa de um filme europeu pesado, triste, não comercial, daqueles que nos expulsam da sala de cinema com a mesma força com que mergulham dentro de nós.
Diante do tamanho das nossas necessidades, e da nossa imensa complexidade, a indústria do amor está fadada a nos desapontar. Ela oferece música para um momento de dor, mas mil músicas são incapazes de nos consolar quando acabamos de ser abandonados. Ela nos dá lindas histórias de amor, mas quem pode com elas quando está coberto por um manto intransponível de medo e tristeza?
O paradoxo do amor público, industrial, feliz, multiplicado nas redes sociais e nas salas de Multiplex, é que as nossas experiências realmente importantes são incomunicáveis e intransferíveis. Apesar do estardalhaço social, estamos sozinhos frente ao amor. Cabe a cada um de nós encontrá-lo, vivê-lo ou perdê-lo intimamente. É inevitável gemer sozinho no escuro, cercado de silêncio. O pessoal da rosa amarela não estará disponível se você precisar deles.
13 de junho de 2012
IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA
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