Unidade de
vítimas especiais
Não ler jornal não é uma opção para um jornalista profissional. É preciso saber o que acontecerá ou aconteceu e, sobretudo, é preciso saber o que a concorrência já avisou que aconteceu. Se o jornalista é um cronista, então, a leitura de diários, sites de notícias e revistas semanais equivale à busca do Assunto Primordial. Foi desse modo que nasceu o gênero literário que, segundo alguns, é como a jabuticaba: só existe no Brasil.
Na origem, as crônicas eram comentários mais ou menos descontraídos sobre os fatos da semana. Era o caso, por exemplo, das de Machado de Assis. Ainda hoje, elas podem ser isso, se se tomar como o fato da semana o concerto da OSB ou o fim da série de TV. As outras possibilidades de se fazer crônica — destacadamente aquela em que o jornalista deixa de ser “leitor” e se torna (o próprio) personagem — são posteriores.
Portanto, não ler jornal não é uma opção para o cronista, mas confesso: às vezes dá vontade de desistir. Nada a ver com o noticiário político. Não sei se ele algum dia foi muito diferente; mudança há, decerto, no grau de liberdade da imprensa para noticiar as tramoias e os desmandos. É outra a notícia que evito ler a todo custo, porque se a leio, e às vezes basta ler o seu título, ela me corrói o dia como se fosse ácido existencial.
O que evito ler não é o inferno das mortes em grupo ou massa: oito passageiros catarinenses esmagados, 13 universitários americanos fuzilados, 17 civis israelenses explodidos, 98 civis palestinos bombardeados, 115 cariocas abatidos pela dengue, 312 civis sírios executados, 300 mil indonésios afogados. Os números nos anestesiam para a brutalidade singular de cada uma daquelas mortes. De tragédia a estatística, saca?
O que evito ler também não é a morte cuja vítima tem nome e sobrenome na imprensa: a engenheira desaparecida depois de abordada por PMs na Barra, o dançarino morto a mando do traficante de Manguinhos, a empresária assassinada numa tentativa de assalto na Rio-Petrópolis. Histórias assim nos revoltam, e a revolta pode ser mobilizadora. Por contraste, as notícias que evito ler são, digamos, paralisantes.
Não ler jornal não é uma opção para um jornalista profissional. É preciso saber o que acontecerá ou aconteceu e, sobretudo, é preciso saber o que a concorrência já avisou que aconteceu. Se o jornalista é um cronista, então, a leitura de diários, sites de notícias e revistas semanais equivale à busca do Assunto Primordial. Foi desse modo que nasceu o gênero literário que, segundo alguns, é como a jabuticaba: só existe no Brasil.
Na origem, as crônicas eram comentários mais ou menos descontraídos sobre os fatos da semana. Era o caso, por exemplo, das de Machado de Assis. Ainda hoje, elas podem ser isso, se se tomar como o fato da semana o concerto da OSB ou o fim da série de TV. As outras possibilidades de se fazer crônica — destacadamente aquela em que o jornalista deixa de ser “leitor” e se torna (o próprio) personagem — são posteriores.
Portanto, não ler jornal não é uma opção para o cronista, mas confesso: às vezes dá vontade de desistir. Nada a ver com o noticiário político. Não sei se ele algum dia foi muito diferente; mudança há, decerto, no grau de liberdade da imprensa para noticiar as tramoias e os desmandos. É outra a notícia que evito ler a todo custo, porque se a leio, e às vezes basta ler o seu título, ela me corrói o dia como se fosse ácido existencial.
O que evito ler não é o inferno das mortes em grupo ou massa: oito passageiros catarinenses esmagados, 13 universitários americanos fuzilados, 17 civis israelenses explodidos, 98 civis palestinos bombardeados, 115 cariocas abatidos pela dengue, 312 civis sírios executados, 300 mil indonésios afogados. Os números nos anestesiam para a brutalidade singular de cada uma daquelas mortes. De tragédia a estatística, saca?
O que evito ler também não é a morte cuja vítima tem nome e sobrenome na imprensa: a engenheira desaparecida depois de abordada por PMs na Barra, o dançarino morto a mando do traficante de Manguinhos, a empresária assassinada numa tentativa de assalto na Rio-Petrópolis. Histórias assim nos revoltam, e a revolta pode ser mobilizadora. Por contraste, as notícias que evito ler são, digamos, paralisantes.
Tampouco são os crimes cruéis que viram manchete os que me
interessam aqui, porque eles até fazem o desconforto existencial retroceder um
pouco. Ora, a mulher que esquarteja e mata (segundo a perícia, nessa ordem) o
marido milionário ganha, pelo ato em si e pela repercussão do ato, uma dimensão
que a afasta do cotidiano, que a afasta desta vida. É como se a excepcionalidade
daquilo simplesmente não pudesse me tocar.
A notícia que evito ler me comunica, ao contrário, a banalização da crueldade, consumada ou não. Não dá alto de página, não repercute nas redes sociais, mas me perturba terrivelmente. É o vislumbre de algo para o qual prefiro não olhar. Mesmo porque, como estou entre os 615 mil ateus declarados — o que é diferente de apenas não ter religião — entre cerca de 200 milhões de brasileiros, não tenho à disposição nenhum lenitivo do gênero “foi Deus quem quis assim” ou “isso é coisa do Demônio”.
Exemplo? Na Bahia, recém-nascido é salvo depois de ter sido abandonado atrás da roda de um caminhão estacionado. Por sorte, o motorista ouviu o choro antes de se pôr em movimento e esmagar o bebê, como pretendido pela mãe ou outro parente. O final feliz não faz desaparecer a crueldade da tentativa de assassinato: um patrulheiro rodoviário chora ao lembrar de outras crianças, as que não foram resgatados a tempo.
Avancei na leitura dessa reportagem, mas só porque já sabia, a partir do título, que o bebê deixado para morrer sob a roda do caminhão fora salvo. No caso de outras notícias, desativo o modo de leitura automática — aquele no qual leio sem de fato prestar atenção, atrás de algo que não sei bem o que é, o Assunto Primordial — tão logo percebo do que se trata. De qualquer forma, é sempre tarde demais. Lá se foi a paz do meu dia...
Em Brasília, menino de 11 anos arranca os olhos de gatinha de três meses. Paro já aí, na chamada do site. É inútil, o ácido já está em ação. Nunca me conformei com a autobenevolência calhorda de considerarmos “animal” exatamente quem demonstra um comportamento tão, tão humano. Os outros bichos não são cruéis. Além disso, falta de empatia com a dor alheia, inclusive a de animais, é o sinal clássico da psicopatia.
Em Volta Redonda, no Dia do Orgulho Gay, homossexual de 15 anos é roubado, assassinado com requintes de perversidade e atirado no Rio Paraíba. Li o suficiente, parei. O ácido. Não pude, porém, deixar de conjecturar se o espaço dedicado ao crime pelos jornais, pequeno em relação ao baiano trucidado por ter dado um abraço no irmão, não refletiria, também ele, a homofobia difusa na sociedade. Afinal, o morto da véspera havia sido confundido com um gay, mas o rapaz do Sul Fluminense era gay assumido. Foi como se eu lesse nas entrelinhas: aquele, foi absurdo; esse, não, mereceu o que teve. Arre, o ácido.
No correr dos séculos, muitos pensadores examinaram “o Mal”. Ausência de Deus? Natureza humana? Circunstâncias sociais? Problemas psiquiátricos? Fosse como fosse, a maiúscula lhe conferia um status metafísico. Wittgenstein, impaciente com o que achava tagarelice da filosofia, finalizou um livro assim: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Como era de escrever pouco, deixou de acrescentar: “E nem ler”.
A notícia que evito ler me comunica, ao contrário, a banalização da crueldade, consumada ou não. Não dá alto de página, não repercute nas redes sociais, mas me perturba terrivelmente. É o vislumbre de algo para o qual prefiro não olhar. Mesmo porque, como estou entre os 615 mil ateus declarados — o que é diferente de apenas não ter religião — entre cerca de 200 milhões de brasileiros, não tenho à disposição nenhum lenitivo do gênero “foi Deus quem quis assim” ou “isso é coisa do Demônio”.
Exemplo? Na Bahia, recém-nascido é salvo depois de ter sido abandonado atrás da roda de um caminhão estacionado. Por sorte, o motorista ouviu o choro antes de se pôr em movimento e esmagar o bebê, como pretendido pela mãe ou outro parente. O final feliz não faz desaparecer a crueldade da tentativa de assassinato: um patrulheiro rodoviário chora ao lembrar de outras crianças, as que não foram resgatados a tempo.
Avancei na leitura dessa reportagem, mas só porque já sabia, a partir do título, que o bebê deixado para morrer sob a roda do caminhão fora salvo. No caso de outras notícias, desativo o modo de leitura automática — aquele no qual leio sem de fato prestar atenção, atrás de algo que não sei bem o que é, o Assunto Primordial — tão logo percebo do que se trata. De qualquer forma, é sempre tarde demais. Lá se foi a paz do meu dia...
Em Brasília, menino de 11 anos arranca os olhos de gatinha de três meses. Paro já aí, na chamada do site. É inútil, o ácido já está em ação. Nunca me conformei com a autobenevolência calhorda de considerarmos “animal” exatamente quem demonstra um comportamento tão, tão humano. Os outros bichos não são cruéis. Além disso, falta de empatia com a dor alheia, inclusive a de animais, é o sinal clássico da psicopatia.
Em Volta Redonda, no Dia do Orgulho Gay, homossexual de 15 anos é roubado, assassinado com requintes de perversidade e atirado no Rio Paraíba. Li o suficiente, parei. O ácido. Não pude, porém, deixar de conjecturar se o espaço dedicado ao crime pelos jornais, pequeno em relação ao baiano trucidado por ter dado um abraço no irmão, não refletiria, também ele, a homofobia difusa na sociedade. Afinal, o morto da véspera havia sido confundido com um gay, mas o rapaz do Sul Fluminense era gay assumido. Foi como se eu lesse nas entrelinhas: aquele, foi absurdo; esse, não, mereceu o que teve. Arre, o ácido.
No correr dos séculos, muitos pensadores examinaram “o Mal”. Ausência de Deus? Natureza humana? Circunstâncias sociais? Problemas psiquiátricos? Fosse como fosse, a maiúscula lhe conferia um status metafísico. Wittgenstein, impaciente com o que achava tagarelice da filosofia, finalizou um livro assim: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Como era de escrever pouco, deixou de acrescentar: “E nem ler”.
06 de julho de 2012
Arthur Dapieve
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