Em plena era da "humanidade em rede", do "mundo de portas e janelas abertas", da "comunicação universal e instantânea", enquanto os arautos da utopia global saúdam o Terceiro Milênio, sob a égide da internet, como o portal de uma nova era de liberdade e transparência, o futuro visível da humanidade começa a ser decidido numa reunião secreta de 9 pessoas de uma entidade que não se pauta por nenhuma regra conhecida ou publicada dentro de um quarteirão murado de um longínquo balneário chinês.
É lá que será decidida a sucessão dentro do órgão máximo de decisão da China e, em função dela, a velocidade em que passará a andar a claudicante economia mundial.
Se ha uma ilustração poderosa das contradições e ilusões que o rompimento de novas fronteiras tecnológicas põe em campo, esta é das mais eloquentes.
As minorias ilustradas e "conectadas" que, em diferentes países da região, protagonizaram a Primavera Árabe estão vivendo na carne o amargo despertar da ilusão vivida ha um ano e meio de que a graça alcançada de "poder falar" que lhes coube como efeito colateral do milagre das novas tecnologias, bastaria para transformar minorias em maiorias ou para igualar às suas, tomadas de culturas exóticas, as expectativas e horizontes sedimentados por milênios de isolamento e servidão das massas miseráveis dos seus compatriotas que agora ameaçam empurrar os países "libertados" de ditaduras laicas para ditaduras religiosas.
Assim com o resto do mundo.
As novas tecnologias tornaram-no menor. Ficou mais difícil manter o isolamento.
Mas o que não estava suficientemente percebido é que era à numericamente insignificante minoria politicamente civilizada - ou quase - que esse isolamento favorecia, e não o contrário.
Tudo ficou mais perto, como sempre, primeiro para os tubarões.
E aí está o mundo do trabalho com direitos, com proteção social, com tribunais; aí está o mundo que respeita minorias, põe a lei acima da força e tem a liberdade como um valor indiscutível, desarvorado, em pânico com a dissolução das suas conquistas no grande oceano dos sem nada, dos que trabalham por migalhas debaixo de pau e agradecem aos céus por isso, predando seus mercados, transformando seus direitos em luxos insustentáveis, arrastando para baixo os que sonhavam que bastaria abrir as comportas para que todos viessem para cima.
Beidaihe, o balneário preferido da nomenklatura chinesa, posto em verdadeiro estado de sítio para que nunca se chegue a saber como nem porque foram tomadas as decisões que vierem a ser anunciadas ao fim desse misterioso evento, tem sido o retiro de verão de gerações sucessivas dos poderosos da nova dinastia que tomou a China a partir de 1949.
A cidade em torno do quarteirão murado de três quilômetros a beira-mar, feito versão moderna da Cidade Proibida dos imperadores em Pequim, está paralisada desde sexta-feira quando chegaram em seus carros pretos de janelas escuras, os membros quase desconhecidos do Comitê Central do Politburo do Partido Comunista Chinês para começar a discutir a sucessão dos nove membros do órgão que tem poder de vida e morte sobre 1/5 da população da Terra e de regular a velocidade daquela que, com a unificação global dos mercados, se tornou o motor de uma economia mundial por isso mesmo em crise.
À distância - e com tanta precisão quanto a que se podia esperar dos oráculos do passado ancestral - os jornalistas mais bem equipados do mundo, sem wi-fi, tentam captar os sinais cifrados que os ajudem a antecipar o que poderá sair de trás daqueles muros.
"Teoricamente todos os membros da liderança do Partido Comunista Chinês são eleitos pelos membros do Comitê Central", lembram estudiosos do labirinto chinês citados pela imprensa inglesa, "mas na verdade o sistema funciona muito mais de cima para baixo do que o contrário, mesmo nesse círculo restrito. O secretário geral do partido ainda tem força para impor a maior parte das suas decisões".
E, sendo assim, a tendência darwiniana é, salvo acidentes de percurso, que ele garanta a perpetuação da sua própria genética política.
A expectativa é, portanto, a de que prevaleçam as escolhas do premier Hu Jintao, tido como um "liberal" pelos padrões chineses, expectativa esta que se sustenta em um único acontecimento, ou num acontecimento e meio, de acordo com os mais otimistas.
Foram eles o expurgo, em maio passado, de um membro do comitê central, Bo Xilai, tido como um "linha dura" acusado de ensaiar namoros com as massas em vez de conchavos com seus pares para subir na hierarquia do partido e, mais recentemente, a nomeação de outro conhecido "liberal" para o mais alto cargo da hierarquia militar, onde se abriga a ala mais forte da resistência à continuação da "ocidentalização" da economia chinesa, "ocidentalização" esta que, como o mundo sabe melhor hoje, é mais de fachada que de fato.
Se tudo der certo pouco mudará, é pelo que se torce mais do que o que se sabe aqui fora.
Mas os sinais que vêm de dentro é de que é preciso haver mudanças, mas ninguém sabe bem quais, nem como fazê-las sem que o circo pegue fogo.
De certo mesmo, nesta nova era da "economia do conhecimento", restam-nos os sinais de que o que antes levava cem anos para acontecer, agora leva menos de 10. Fica por decidir se tal multiplicação de velocidade se dará no sentido ascendente ou descendente. Ou, se quisermos ser otimistas, quanto ainda teremos de descer antes que a orientação geral do todo vire para cima de novo.
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