"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 19 de janeiro de 2013

EMPREGADA SÓ ENTRA DE UNIFORME

A cena urbana brasileira traz vestígios de uma sociedade que viveu 300 anos com a escravidão, tão evidentes sinais que se banalizaram e raramente os percebemos.

Uma família entra no restaurante com os senhores à frente, o casal mais jovem um pouco atrás, e depois de todos vem a babá vestida de branco segurando a criança. A cena em tudo lembra os quadros de Debret.

Esse é o valor da nota do Ancelmo Gois esta semana sobre a proibição dos clubes Caiçaras e Paissandu de entrada de babás não uniformizadas em suas dependências. O Jockey e o Piraquê fazem a mesma exigência.

Ao colocar o dedo na ferida, a coluna do meu colega abriu a boa polêmica. O branco usado pelas babás tem o objetivo de marcar a divisão entre as pessoas e deixar explícito a que grupo social elas pertencem.

Como disse D., que aos 37 anos tem 20 anos de trabalho, ouvida pelo GLOBO, a roupa branca não é prática. “As crianças brincam no parquinho com areia e se sujam. Como nossas roupas são brancas e elas vão para o nosso colo, ficamos também imundas.” Ela reclama também da falta de nome próprio. “As crianças só nos chamam de babá.”

D., que não disse o nome por motivos óbvios, desconfia que a cor escolhida “é para separar empregadas de patroas”. Desconfiança acertada a de D. A cena descrita no primeiro parágrafo desta coluna é costumeira nos restaurantes da Zona Sul do Rio e em outros centros urbanos brasileiros.

Os clubes reagiram e disseram que não é discriminação, mas padronização. Que padrão? Uma sócia do Paissandu disse que se houver algum acidente com a criança a babá será facilmente identificada. Argumento desprovido de sentido.

O Brasil é o país que tem maior número de empregadas domésticas do mundo, segundo recente estudo divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). São mais de 7 milhões de pessoas; 93%, mulheres; 61%, negras. Mais de 350 mil têm entre 10 a 17 anos.

O Brasil não ratificou a Convenção 189, da OIT, que estabelece a obrigatoriedade de estender aos empregados domésticos os direitos de todos os trabalhadores.

Uma Proposta de Emenda Constitucional tramita no Congresso há vários anos. Já aprovada na Câmara, terá que ir ao Senado e depois voltar para a Câmara. Estabelece 44 horas semanais de jornada, direito a hora extra, adicional noturno e seguro-desemprego. Hoje, só um terço dos trabalhadores domésticos tem carteira assinada.

Mas esta havendo uma forte valorização do trabalhador doméstico. Em 2012, esse foi o item de custo das famílias que mais subiu: 12,73%. É sinal de avanço, e a classe média tem que se preparar para os novos e saudáveis tempos.

Há mais oportunidades de trabalho, mais valorização da educação, que levam a novas ambições para todas as pessoas que hoje estão no trabalho doméstico.

As mudanças vão continuar nos próximos anos. Os salários das empregadas vão subir, a lei estabelecerá maiores direitos, a mobilidade social fará com que haja menos oferta de trabalhadores para esse serviço. Terá que haver mais creches. Os homens, enfim, terão que ampliar sua parcela na divisão do trabalho em casa.

Muita gente vai reclamar, mas é a modernização chegando aos usos e costumes do Brasil. Há várias realidades para as empregadas domésticas, mas a maioria ainda trabalha com menos direitos do que se espera de uma sociedade moderna.

O branco que aparta as babás não incomoda a maioria dos brasileiros. Uma pena. A discriminação não desaparece se o vestuário for o que a trabalhadora escolher, na cor que desejar, mas será um passo para atualizar a cena urbana no Brasil.

19 de janeiro de 2013
Míriam Leitão, O Globo

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