"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ADEUS A FERNANDO LYRA

 

Por três motivos o pernambucano Fernando Lyra garantiu seu lugar na história recente da política brasileira: a atuação como deputado federal durante a ditadura militar de 1964; o papel que desempenhou na eleição do presidente Tancredo Neves; e a autoria da frase mais corrosiva sobre o atual senador José Sarney. Comecemos pelo fim.

Então ministro da Justiça, enquanto o país ainda esperava que Tancredo recuperasse a saúde para assumir a presidência da República, Fernando foi designado por José Sarney, o vice no exercício da presidência, para anunciar o fim da censura. O Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, estava lotado para ouvir o anúncio.

Fernando sabia que a esmagadora maioria das pessoas ali reunidas tinha horror a Sarney, que apoiara a ditadura militar até quase o fim dela. Em tempo pulou para o barco de Tancredo. Como elogiar Sarney sem despertar a ira daquela multidão? Fernando encontrou a saída em meio ao discurso de improviso:

- O presidente José Sarney é a vanguarda do atraso.

Menos de um ano depois Sarney o demitiu.


A ditadura de 64 criou dois partidos: ARENA, da situação, e MDB, da oposição. A própria ditadura teve que convencer alguns políticos a se filiarem ao MDB. Corria-se o risco de não se obter o número mínimo de assinaturas para que o partido existisse.

Fernando entrou no MDB espontaneamente. Elegeu-se deputado estadual. E depois federal várias vezes. Fez parte do reduzido grupo de parlamentares que de fato se opôs à ditadura. Mais do que isso: desafiou-a denunciando a tortura e o desaparecimento de presos.

Diversas vezes, amigos de Fernando deram como certo sua cassação com a perda do mandato e dos direitos políticos. Fernando escapou da degola. E foi o primeiro deputado de esquerda a apoiar a candidatura presidencial de Tancredo.

O apoio foi dado antes da candidatura existir. Antes mesmo do próprio Tancredo cogitar dela. No dia da posse de Tancredo como governador de Minas Gerais em 1983, Fernando voou a Belo Horizonte sem ser convidado e sem avisar a nenhum dos seus colegas do MDB.

Até então, ele era da turma do deputado Ulysses Guimarães (SP), presidente do partido. E mantinha distância de Tancredo, tido como um moderado pouco confiável. Tancredo levou um susto quando o viu na solenidade de posse. Convidou-o para almoçar. E escutou dele:

- Estou aqui, Dr. Tancredo, para dizer que o senhor tem de ser candidato a presidente da República pelo MDB. Somente o senhor poderá vencer, pondo fim à ditadura.

- Mas Fernando, tudo o que sempre quis foi ser governador de Minas. E quando me elejo você vem falar em candidatura a presidente? - devolveu Tancredo.

A partir daquele dia, Fernando se ocupou em articular a candidatura de Tancredo, embora a princípio sem o aval dele.

- Tancredo me disse um dia: 'Fernando, você não pode pensar em eleição pela oposição sem o apoio da esquerda'. E eu perguntei quem ele considerava esquerda no Brasil. 'Francisco Pinto e Miguel Arraes. Tendo o apoio dos dois, eu tenho o apoio da esquerda'".

Chico Pinto era deputado federal pelo MDB da Bahia. Arraes, ex-governador de Pernambuco. Fernando convenceu os dois a apoiarem Tancredo. E ainda arrastou para o lado dele o resto da esquerda do MDB. Cabalou no PT o apoio de três deputados, depois expulsos do partido.

Sem o apoio da esquerda, Tancredo jamais teria renunciado ao governo de Minas para se aventurar a ser candidato a presidente.

Fernando foi obrigado pelos médicos a renunciar à política eletiva no final de 1998. Era cardiopata. Havia tido um infarto ainda jovem. Depois disso, em ocasiões distintas, ganhara um total de sete pontes safenas e uma mamária. Derrotou dois tumores malignos - um no intestino grosso, outro no pulmão.

- Eu não me entregarei fácil - disse-me um dia, há mais de 10 anos, depois de passar por mais uma revisão médica.

Prometeu e cumpriu.

Lutou mais uma vez contra a morte desde o dia cinco de janeiro passado, internado no Instituto do Coração, na capital paulista. Nos últimos 20 dias foi posto em coma induzido. Dependia de aparelhos para seguir vivendo.

O aparelho de hemodiálise foi desligado na terça-feira. Segundo médicos que o atendiam, sobreviveria, no máximo, mais 48 horas. Sobreviveu quase 40. Seu amor pela vida só tinha um sério concorrente: seu amor pelo telefone.

- Quais são as novidades? - costumava perguntar.

Infelizmente, as novidades não são nada boas, Fernando. Perdi um grande amigo.

15 de fevereiro de 2013
Ricardo Noblat

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