Funciona em Brasília um órgão que atende pelo curioso nome de Comissão da Verdade. Pessoas cínicas e maldosas poderão insinuar que ela é assim chamada porque outras comissões estabelecidas na capital não teriam compromisso com os fatos, um fenômeno não muito raro neste planeta.
No caso, a verdade em questão refere-se a fatos ocorridos durante o falecido regime militar, com especial dedicação ao tratamento dado aos adversários do poder. Ou seja: está em questão o uso da tortura na defesa do regime.
Na semana passada, a comissão se dedicou aos métodos usados pelo DOI-Codi em São Paulo no tratamento de seus prisioneiros.
O coronel, hoje reformado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, produziu uma explicação curiosa. Primeiro, negou ter participado de sessões de tortura. Mas fez questão de afirmar que sempre agiu cumprindo ordens. Quem deveria estar sentado em seu lugar, disse ele, era o Exército Brasileiro.
Pode-se traduzir essa defesa, sem malícia, como uma confissão de que havia tortura, mas não por sua iniciativa pessoal. “Nunca ocultei cadáver, nunca cometi assassinato”, disse ele. Mas há muita gente por aí que não pode dizer o mesmo.
Faltou no depoimento de Ustra uma afirmação direta de que não houve tortura por sua ordem ou com seu consentimento.
Como o tratamento dado aos inimigos do regime militar é de conhecimento público, é aceitável que Ustra pode não ter mentido — e realmente não há provas de que tenha cometido o crime do assassinato de prisioneiros — mas não parece haver dúvida de que tinha pleno conhecimento do que acontecia aos acusados de terrorismo.
Não é possível esquecer que o combate aos inimigos do regime incluía muitos que o enfrentavam apenas politicamente. E muitas vezes a repressão não fazia distinção entre adversários políticos pacíficos e inimigos do regime dispostos a derrubá-lo pela violência.
Depoimentos como o de Ustra são obviamente importantes. A história do regime militar precisa mesmo ser recordada, e obviamente por personagens de todos os matizes.
A Comissão da Verdade (que talvez tenha esse nome para diferenciá-la de outras iniciativas de Brasília) pode prestar um serviço especialmente relevante: há muitos momentos, na história de qualquer país, que não podem ser esquecidos, quanto mais não seja para evitar que se repitam.
É verdade que não há, no panorama político do país, o menor indício da possibilidade de uma volta aos anos de chumbo. Mas, principalmente na vida pública, precaução demais nunca é de menos. E a Comissão da Verdade está nesse caso.
14 de maio de 2013
Luiz Garcia, O Globo
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