Ao ler a Piauí deste mês, me deparei com uma crítica que o Mario Sergio Conti fez do livro Dirceu – A Biografia, de Otávio Cabral. Eu não li o livro, apesar do assunto política me interessar muito e da história de José Dirceu ao longo da sua vida ser digna de roteiro de filme. A análise e observações de Conti sobre o livro são impressionantes.
Conti abre seu artigo falando o seguinte: “O título de Otávio Cabral é Dirceu – A Biografia. O autor poderia ter dispensado o artigo ou posto ‘uma biografia’. Mas tascou a biografia, o que indica a pretensão de ter feito o relato completo e fidedigno da vida de José DIrceu. Tarefa difícil porque o biografado não quis ser entrevistado pelo biógrafo.”
Já disse Guimarães Rosa que a verdade é uma só - são várias. Por isso, não existe “a” história, e sim “uma” história. Nesse sentido, Conti tem toda razão. Ao nomear o livro dessa forma, o jornalista Otávio Cabral foi presunçoso em demasia, abrindo mão do bom senso.
Vou citar um exemplo: quando escreveu um livro sobre Salvador, em homenagem à capital baiana pela passagem dos seus 450 anos, Antonio Risério intitulou a sua obra de “Uma história da Cidade da Bahia”. E explicou no prefácio: “Faço a mais absoluta questão desse artigo indefinido. O que há para ler, nas páginas seguintes, não é de modo algum a história de Salvador. Mas uma, entre outras possíveis."
Pelo que relata Conti, Otávio Cabral não fez o seu trabalho como manda o figurino, cometendo erros de todos os tipos: tolos, imperdoáveis, impagáveis.
Confira aqui um resumo do que diz Conti na Piauí:
- “O livro começa em 1968, com os pais de José Dirceu assistindo pela televisão à sua prisão no Congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna. Informa que a notícia da prisão foi ‘transmitida em rede nacional de televisão’. Mas o Brasil só teria rede nacional de tevê no ano seguinte.”
- “O autor diz e rediz que Passa Quatro, onde José Dirceu nasceu, tinha 11 mil habitantes. São Paulo contava com 4 milhões de moradores quando ele se mudou para lá. O autor faz o cálculo e conclui que a capital era ‘trezentas vezes maior do que a sua Passa Quatro natal’. Cálculo errado: São Paulo era 363 vezes maior. Dirceu estudou no Colégio Paulistano, ‘na rua Avanhandava, próximo à praça da Sé’. Não, a escola ficava na rua Taguá, na Liberdade. Preparou-se para o vestibular no curso ‘Di Túlio’, que se grafava ‘Di Tullio.’”
- “Antes do golpe de 1964, segundo a biografia, José Dirceu conheceu o autor de novela Vicente Sesso, ‘com quem foi trabalhar na TV Tupi, ajudando a redigir roteiros’. Sesso ‘acabara de escrever Minha Doce Namorada, que deu à atriz Regina Duarte o apelido de a namoradinha do Brasil’. E José Dirceu ‘foi praticamente adotado por Sesso, que o levou para morar na sua casa, no mesmo quarto de seu filho adotivo, o ator Marcos Paulo’.
“José Dirceu não trabalhou na TV Tupi nem fez roteiros. Foi datilógrafo de Sesso. Nunca morou na casa do escritor. Sesso, isso sim, lhe emprestou uma casa que tinha na rua Treze de Maio. Ele só veio a escrever Minha Doce Namorada em 1971, às pressas, para substituir uma novela que obtivera pouca audiência. Essas informações foram dadas pelo próprio José Dirceu numa entrevista a Marília Gabriela que se encontra transcrita na internet. A data e a composição de Minha Doce Namorada podem ser achadas em histórias da teledramaturgia.”
- “O biógrafo diz que Rui Falcão, hoje presidente do PT, foi colega de José Dirceu na Pontifícia Universidade de São Paulo, onde estudou jornalismo. A PUC sequer tinha curso de jornalismo na época e Rui Falcão estudou direito, mas na Universidade de São Paulo. Relata que 5 mil estudantes se reuniram ‘nas arcadas do Grupo Escolar Caetano de Campos’, que não se chamava ‘Grupo Escolar’ e não tem arcadas.
Afirma que a Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antônia, tem cinco andares, um a mais do que se vê na foto. Sustenta que uma das ‘ações ousadas’ de José Dirceu foi a destruição do palanque do governador paulista, Abreu Sodré, no 1º de maio de 1968, na Praça da Sé. O ataque a Sodré foi feito por metalúrgicos de Osasco, liderados por José Ibrahim.
É isso que está dito na entrevista de Ibrahim a José Dirceu, no blog deste último. No Congresso da UNE em Ibiúna, José Dirceu ora é colocado num ônibus, ora num camburão, mas aparece numa foto numa Rural Willys. Depois de uma semana, é levado ‘para a Fortaleza de Itaipu, em São Vicente’ – e a fortaleza fica no município de Praia Grande.”
- “O autor não fica só nos erros menores. Escreve que em 1968 ‘a Guerra Fria encontrava-se no auge e a invasão dos Estados Unidos a Cuba era iminente’. A invasão de Cuba fora eminente em 1961, quando a CIA organizou o desembarque na Baía dos Porcos, e no ano seguinte, durante a crise dos mísseis, e não seis anos depois.
“E 1968 não foi o ano do auge da Guerra Fria, e sim o da sua grande crise, que levou o capitalismo e o stalinismo a se darem as mãos. Em janeiro, na Ofensiva de Tet, os vietcongues chegaram aos jardins da embaixada americana em Saigon sem a ajuda de tropas da China e da União Soviética. Em maio, a greve geral na França foi deflagrada apesar da oposição frontal do gaullismo e do Partico Comunista, que seguia ordens de Moscou. Em agosto, a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, para massacrar uma experiência de socialismo democrático, mostrou que o apoio dos Estados Unidos à Primavera de Praga não passava de retórica.
“Em meio a esses três fatos turbulentos, que insuflaram as mobilizações brasileiras daquele ano, José Dirceu cresceu como liderança política. Seria interessante saber o que pensava a respeito deles. É obrigação de um biógrafo analisar o mundo no qual o seu biografado vive, e contar como ele reage a grandes mudanças. Otávio Cabral preferiu fofocar sobre os namoricos do líder estudantil, que ele trata como um fauno.”
- “Acusação de assassinato e delação são graves. Mereciam investigação profunda, ponderação e exposição demorada. Seria preciso sobretudo ter boa-fé. Foi o que fez Elio Gaspari ao analisar casos semelhantes na série de quatro livros monumentais sobre a ditadura. Foi também o que fez o jornalista Vicente Vilardaga no recém-lançado À Queima-Roupa – O Caso Pimenta Neves, livro no qual relata o assassinato da repórter Sandra Gomide pelo diretor de redação de O Estado de S.Paulo. Vilardaga busca entender um assassino, Pimenta das Neves, cujo crime lhe é repulsivo.
À Queima-Roupa é sólido justamente pelo seu empenho em compreender o que pensou e como agiu o homicida, situando o seu crime no contexto da imprensa paulista.
“Já Otávio Cabral envolve José Dirceu numa névoa de insinuações para melhor denegri-lo. Em títulos de capítulos, chama-o de ‘camaleão’, ‘bedel de luxo’, ‘o maior lobista do Brasil’ e ‘o maior vilão do Brasil’. Como Dirceu foi condenado e aguarda a prisão, o que Cabral faz é chutar um homem caído no chão.”
- “Mas [Cabral] comete tantos erros que acaba chutando a sua própria reputação profissional. Em 1978, diz ele, José DIrceu participou de um grupo que ajudou a financiar candidatos do ‘MDB simpáticos à luta armada, como Anísio Batista de Oliveira e Djalma Bom’. Que surpresa. Anizio (com ‘z’) Batista e Djalma Bom eram sindicalistas no final dos anos 70. O primeiro era metalúrgico e integrava o grupo de Lula em São Paulo. O outro estava na Pastoral Operária e militava na oposição metalúrgica de São Paulo. Ambos discordavam da luta armada e do MDB. Candidataram-se a deputados na década seguinte, e foram eleitos pelo PT.
“Desconhecendo fatos comezinhos como esses, Otávio Cabral decreta logo em seguida: ‘Foram as mulheres, e não a política, o que mais atraiu Dirceu de volta a São Paulo’. Como ele pode ter tanta certeza? Apaixonar-se, meter-se em namoros tumultuados, praticar adultério, gostar de amor e sexo fora do casamento – tudo isso ocorreu com José DIrceu. E também com muita gente da esquerda e da direita, com pobres e ricos das mais diferentes atividades.
“Achar que isso define alguém é ingenuidade, clichê reducionista. Para ficar em três exemplos da esquerda (que não têm nada a ver com José Dirceu, diga-se): Marx teve um filho com a empregada Helena Demuth, Lênin foi amante da comunista francesa Inessa Armand, Trotsky teve um caso com a pintora Frida Khalo. As traições amorosas explicam o que fizeram na política?”
- “Em compensação, eis uma afirmação direta de Otávio Cabral sobre profissionais de sua área, o jornalismo: ‘Antigos companheiros de Ibiúna e de clandestinidade tinham posições de destaque na imprensa em meados dos anos 80, como Rui Falcão, que comandava a revista Exame, e Eugênio Bucci, diretor da Playboy’. Nem Falcão nem Bucci participaram do Congresso da UNE em Ibiúna. O primeiro porque não era mais estudante e o outro por ser criança. Eugênio Bucci jamais esteve na clandestinidade. Rui Falcão, sim, mas não foi ‘companheiro’ de Dirceu: clandestino, militava em outra organização e noutra cidade. Bucci nunca foi diretor da Playboy. São cinco erros factuais numa frase. Algum recorde foi batido.”
- “A Biografia tem dezenas de barbaridades semelhantes. Uma das melhores: Fernando Collor, na tentativa de se manter no Planalto durante a campanha pela sua destituição, conclamou o povo a ir às ruas com roupas pretas para defendê-lo, e todos foram de verde-amarelo. Como todo mundo sabe, ocorreu o contrário. Collor incitou a população a se vestir de verde-amarelo e o Brasil foi tomado por manifestantes de preto.”
- “Em menor grau, o livro é obcecado por novelas e futebol. São inúmeras as referências de tramas e atores do horário nobre. Todas descabidas, porque José DIrceu não acompanha novelas. Ele gosta de futebol, mas não mais que um torcedor típico.”
- “Em vez de trabalhar, Otávio Cabral preferiu a invencionice delirante.”
Engraçado que esta “biografia” de José Dirceu encontra-se na lista dos livros mais vendidos. Isso significa que está enganando muito bem.
10 de agosto de 2013
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