"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 10 de agosto de 2013

MENSALÃO E SENADOR CASSOL: PERDA DO MANDATO PARLAMENTAR

O STF ontem errou (data vênia) ao não decretar a perda do mandato do senador Cassol, transferindo essa responsabilidade ao Senado Federal. Sobre a possibilidade de o STF decretar (ou não) a perda do mandato do parlamentar que ele mesmo condena há uma regra e uma exceção (ambas previstas nas leis e na CF). A sutileza é saber o que entra na regra e o que vai para a exceção.
 
Aos parlamentares condenados no caso mensalão (João Paulo Cunha, José Genoíno, Pedro Henry e Valdemar Costa Neto), o STF (por 5 votos a 4) aplicou a regra (perda do mandato decretada pelo STF). Ao senador Cassol, condenado ontem pelo STF, diante dos votos dos dois novos ministros (Barroso e Teori) aplicou-se a exceção (perda do mandato a ser decretada pela Casa Legislativa). De acordo com minha opinião, os dois casos entram na “regra” (não na exceção). Dois casos substancialmente idênticos (atos corruptivos praticados no exercício da função), com tratamentos distintos. Errou o STF ontem (data vênia).
 
Ao STF compete decretar a perda do mandato do parlamentar em duas hipóteses: (a) quando se trata de crime cometido com abuso de poder ou violação de dever funcional ou (b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos. É o que diz o art. 92, I, do Código Penal. Os réus do mensalão foram enquadrados nessa lei. É incompreensível que ela não tenha sido aplicada também para o senador Cassol, que também foi condenado por violar o dever funcional (fraude em licitações, que significa corromper o mandato público). Nos casos de agentes públicos ou políticos que atuam contra a administração pública, que corrompem sua função, a decisão sobre a perda do mandato não pode ser corporativa. Esse campo é do controle jurídico, não político.
 
A decisão do STF, no caso mensalão, está em conformidade com o art. 15, III, da CF, que prevê a suspensão dos direitos políticos de quem é condenado criminalmente em sentença definitiva. Como desdobramento natural, diz o art. 55, IV, que, nesse caso, a Casa Legislativa apenas declara a perda do mandato, não tendo nada que decidir (visto que a decisão aqui é judicial, ou seja, exógena ou externa). Essa é a regra geral que comanda o assunto. Ela comporta uma única exceção: quando o STF condena o parlamentar e ausentes os requisitos do art. 92, I, do CP (por exemplo: quando o condena a pena alternativa ou substitutiva, em razão de um acidente de trânsito), a decisão de decretar ou não a perda do mandato é endógena ou interna, ou seja, exclusiva da Casa Legislativa (CF, art. 55, VI), que constitui exceção à regra geral dos arts. 15, III e art. 55, IV, da CF.
 
O conflito aparente de normas, no caso da perda do mandato parlamentar pelo STF, se resolve pelo critério interpretativo da regra-exceção. A regra é a prevista no art. 55, IV, c.c. os arts. 15, III, da CF e 92, I, do CP, enquanto a exceção está prevista no art. 55, VI, da CF. O caso mensalão se encaixa na regra, não na exceção. O caso do senador Cassol, que corrompeu o exercício da sua função pública, também entra na regra (não na exceção).
Logo, competente exclusivo para decretar a perda do mandato é o STF, não a Casa Legislativa respectiva. Joaquim Barbosa, Gilmar, Marco Aurélio e Celso de Mello votaram acertadamente pela regra. Outros seis ministros (incluindo os dois novos) votaram pela exceção. Estes últimos erraram, de acordo com meu ponto de vista. O controle da corrupção na administração pública, em caso de condenação judicial fundada no art. 92, I, do CP, é jurídico, não político.
 
Para evitar a injustiça (de se admitir a perda do mandato em todos os casos e em todas as situações) temos então o seguinte: por força do inc. VI do art. 55, da CF, quando não incide o art. 92, I, do CP, cabe à Casa Legislativa decretar (endogenamente) ou não a perda do mandato em decisão secreta, por maioria absoluta. Mas isso só é possível – repita-se – quando não incide o art. 92, I, citado. E este caso excepcional de perda endógena do mandato constitui exceção à incidência automática do art. 15, III, c.c. o art. 55, IV, da CF.
 
Essa nos parece a interpretação correta dos textos (só) aparentemente conflitivos. É a interpretação, de outro lado, que respeita não só o conteúdo das normas envolvidas (art. 92, 1, do CP, e arts. 15, III, 55, IV e 55, VI, da CF), senão também todos os poderes constituídos. Porque será uma grave ofensa ao STF se ele declarar a perda do mandato (nos termos do art. 92, I, do CP) e a Câmara dos Deputados não acatar (desautorizar) essa decisão. Ficaria uma decisão judicial sob o crivo do Poder Legislativo.
 
Nada mais disruptivo e assistemático. Decisão de juiz se cumpre (depois da coisa julgada, quando então não cabe mais nenhum recurso). Os poderes são independentes e é fundamental que se respeite essa independência, mas devem ser harmônicos. Daí a necessidade de se delimitar com precisão quando o STF decreta a perda do mandato do parlamentar (decretação exógena) e quando essa tarefa é da própria Casa Legislativa (decretação endógena).
 
10 de agosto de 2013
Luiz Flávio Gomes

Nenhum comentário:

Postar um comentário