"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 29 de maio de 2012

RUI BASTIDE E SEU ALVARINO*


Ainda Dom Pedrito. Depois que Bertrand Delanoë, homossexual assumido, foi eleito prefeito de Paris, a França passou a gabar-se na imprensa de sua mentalidade liberal. No mesmo ano da eleição de Delanoë, Veja nos informava que o Estado que reúne a maior quantidade de piadas machistas havia assumido a dianteira na defesa dos direitos dos homossexuais. A revista paulistana referia-se ao fato de a Justiça do Rio Grande do Sul ter emitido julgamentos favoráveis em causas relacionadas a reivindicações dos gays.

A ausência de preconceitos da gauchada, no que se refere à homossexualidade, não é atitude de hoje, nem mesmo de ontem, mas data de muito mais longe. Antes mesmo que os parisienses ousassem eleger um prefeito homossexual, o Rio Grande do Sul já teve um, e dos mais queridos por seus conterrâneos. Ora, direis, Dom Pedrito não é Paris. Claro que não é. Dom Pedrito é uma pequena comuna isolada do mundo. Já Paris é uma das capitais deste mesmo mundo, com todo cosmopolitismo que isto implica.

Feliz de quem tem uma província no coração, disse alguém. Final dos anos 50, há mais de meio século, portanto. Naquela cidadezinha da fronteira gaúcha, nos confins da fronteira seca entre Brasil e Uruguai, então com 13 mil habitantes, tive minhas primeiras lições de tolerância. Um dos líderes políticos locais, voz de estentor, bom de voto e temível nos debates, jamais escondeu suas preferências por jovens efebos. Nem por isso deixava de contar com o apreço dos pedritenses.

Alto, apolíneo no porte, dionisíaco na vida, Rui Bastide foi eleito e reeleito vereador várias vezes e chegou a ser prefeito da cidade. Nos anos 70, teve seus direitos políticos cassados, por um ato único do presidente Garrastazu Médici. Honrado com a deferência, comemorou o ato com foguetes.
Comentário indiferente na cidade: "O Brasil vai perder muito com esta cassação". Na época, não se falava em gays, tampouco havia associações de gays e lésbicas. "Já procurei até médico" - confessou-me um dia Bastide -. "Mas que vou fazer? É a minha natureza." Em tempo: Brasil era um negrão que fazia jus aos favores do futuro alcaide.

Sua detenção pelos militares virou folclore. O vereador estava prestando seus serviços ao Brasil, quando batem na porta de seu apartamento. Ainda pelado, entreabriu a porta. Três militares o procuravam, um oficial e dois soldados, de metralhadoras em punho.
- O senhor é o Rui Bastide? - perguntou o oficial.
- Sou.
- Então o senhor está convidado a comparecer às dependências do 14º Regimento de Cavalaria.
- Acho que vou declinar do gentil convite - respondeu Bastide. Ocorre que não é bem um convite. O senhor terá de ir. Agora e como está.
- Então me levem - disse o Rui - abrindo a porta e os braços, em plena glória de sua nudez.

"Os soldadinhos enrubesceram - me contava o Rui -, não sabiam para onde apontar as metralhadoras. Aí, me deram tempo. Tomei banho, me perfumei, me despedi do Brasil, não sabia quanto tempo ia ficar preso".

Pelo jeito, a prisão foi produtiva. Em vez de xingar a ditadura, Rui encenou um balé, onde bravos lanceiros do Ponche Verde, envergando diáfanas bombachas brancas, executavam impecáveis pas de deux enquanto cantavam uma ode ao 14º RC: "Querido Exército..."

A trajetória do Rui, a meu ver, está à espera de um bom cineasta. Em passadas andanças pela Europa, em vários países relatei este caso pedritense. E vi alemães, franceses, espanhóis perplexos, admitindo que em suas comunidades, por mais abertas que fossem aos novos tempos, não haveria lugar para um prefeito gay. Fala-se muito hoje em abrir o jogo, sair do armário, assumir-se. Tais expressões eram desconhecidas em Dom Pedrito. Se alguém era homossexual, ninguém tinha nada a ver com isso e estamos conversados.

Há fatos que na infância nos marcam a memória e só depois de muito viver lhes conferimos a verdadeira dimensão. Ocorreu no Upamaruty, distrito rural de Livramento, na fronteira com o Uruguai, onde vivi meus dias de guri. Torrão de gente rude, onde qualquer adulto tinha de cuidar-se com a língua. Lá na Linha Divisória - como era mais conhecida a região - uma palavra mal empregada, ou mal entendida, podia custar uma vida. Lá, conheci Seu Alvarino.

Fora trazido da cidade, como cozinheiro do Peixoto, um bolicheiro local. Negro, enorme, espadaúdo, durante o dia cuidava da cozinha e das coisas do Peixoto. Nas tardes de domingo, cumpridas suas tarefas caseiras, vestia uma blusinha de rendas cor-de-rosa, punha sua mais rodada saia longa e sentava na porta do bolicho, munido de agulhas e novelos.

A gauchada ia chegando, boleando a perna e atando os cavalos no alambrado. Em meio àquela gente armada, revólveres e facões pendendo da guaiaca, seu Alvarino, indiferente às charlas e ruídos de esporas, permanecia absorto em seu crochê, como se ali estivesse tricotando desde o início dos tempos.

Jamais ouvi qualquer piada a respeito das prendas domésticas de Seu Alvarino. Também, pudera! Seria uma empreitada um tanto arriscada dirigir qualquer comentário desairoso àquele par de munhecas. Seria homossexual? Ou o travestir-se seria apenas uma prosopopéia que o acometia aos domingos? Fosse como fosse, se gostava de usar saias e fazer crochê, isto era algo que só a ele dizia respeito.

"A principal explicação para o Rio Grande do Sul estar na vanguarda da defesa dos gays encontra-se no bom nível educacional da população do Estado", diz o redator de Veja, que certamente jamais teve notícias do Bastide ou do seu Alvarino. "Uma classe média instruída e formada com base na imigração européia tende a ser mais crítica e aberta a atitudes liberais", afirma o historiador Luiz Roberto Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Pura conversa fiada de acadêmicos. Lá na Linha, não era hábito local imiscuir-se na vida de ninguém. O preconceito veio através dos padres europeus, que lá introduziram as noções de pecado e culpa entre gaúchos que viviam imersos em uma espécie de paganismo crioulo pré-cristão.

29 de maio de 2012
janer cristaldo

* Excertos de um projeto de memórias

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