PARTE 2
"Um mar de milicos na pista do
Galeão"
A voz encerrou a leitura do ato às
22h30. Não muito longe das Laranjeiras, num apartamento da Rua Assis Brasil,
36, em Copacabana, o deputado federal Raphael de Almeida Magalhães, da Arena,
interrompia um jantar para acompanhar pelo rádio o decreto do governo. Raphael
festejaria 37 anos do dia seguinte e aproveitara para reunir alguns amigos ao
redor da mesa. Estavam com ele na sexta-feira à noite seis pessoas - entre elas
a economista Maria da Conceição Tavares. Minutos depois do pronunciamento,
tocou o telefone. Era o então deputado Renato Archer. "Você vai ser preso,
Raphael", anunciou Archer. Ele mal havia colocado o fone negro no gancho
quando ligaram o ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda e o deputado da
Arena Daniel Krieger. Ambos com a mesma informação. Estavam todos certos. A
campainha do apartamento tocou às 23 horas. O próprio Raphael abriu a porta e
deu de cara com dois agentes do Dops do Rio de Janeiro. "Estamos aqui com
uma ordem do I Exército. O senhor deve se apresentar na Polícia Central",
disse um dos delegados. O outro policial chegou a pedir desculpas pelo
transtorno (Raphael tinha sido secretário de Segurança Pública no governo de Carlos
Lacerda e por isso era bem-quisto na polícia). O deputado pegou uma pequena
valise e, diante do olhar dos amigos, disse que estava pronto para acompanhar a
turma do Dops. "Mas o senhor vai levar só isso?", perguntou um dos
agentes. "É que não pretendo ficar muito tempo preso", respondeu
Raphael (ele ficaria cinco dias detido na Vila Militar, no bairro de Realengo).
Raphael de Almeida Magalhães tinha
deixado a vice-liderança da Arena, o partido governista, no início do ano.
Durante os três meses de crise entre o discurso de Márcio Moreira Alves que
ofendera as Forças Armadas, em setembro, e a votação da véspera, em que o
governo perdera por 216 votos contra 141, na qual se recusou a licença para
processar Márcio Alves, Raphael liderara a manobra da Arena contra o próprio
governo. Por isso ele foi um dos primeiros nomes da lista de prisões preparada
pelo chefe do Gabinete Militar de Costa e Silva, o coronel Jayme Portella - os
outros eram os deputados David Lerer e Hermano Alves, ambos do MDB, o ex-presidente
Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. Na Vila Militar, Raphael dormiu sozinho,
em meio a um mar de beliches. Na manhã seguinte, dia de seu aniversário, foi
procurado por um dos soldados que se preparavam para o campeonato de futebol de
salão do quartel. "O senhor gostaria de jogar no nosso time?" Raphael
era excelente jogador de futebol, e essa fama corria o Rio de Janeiro. Ele
aceitou o convite, entrou em campo e fez um dos gols antes de se contundir e
sair da quadra.
No dia 12 de dezembro, ele desembarcara
no Rio de Janeiro a bordo de um avião Caravelle, num vôo da Cruzeiro do Sul,
proveniente de Brasília. Deixara a capital no fim da tarde, logo depois da
votação do Congresso, que decidira não permitir a licença para Márcio Moreira
Alves ser processado por seus pares. Naquela ocasião, o Congresso trabalhava ao
ritmo desse vôo da Cruzeiro do Sul - fazia Rio-Brasília às terças e retornava
às quintas. O líder da Arena rebelde entrou no vôo com Renato Archer, Daniel
Krieger, Ney Braga e Teotônio Vilela. Subiram a escada e, logo na primeira
fileira, deram com o ministro da Justiça, Gama e Silva, e com o coronel Sizeno
Sarmento, comandante do I Exército. Estavam os dois com o semblante fechado.
Gama e Silva já levava em sua pasta o rascunho de uma versão do AI-5.
"Quando a porta do avião se abriu, havia um mar de milicos esperando o
Gama e o Sizeno na pista do Galeão", lembra Raphael de Almeida Magalhães.
"Tivemos certeza, naquele fim de tarde do dia 12, que o governo se
irritara profundamente com o desfecho do episódio Márcio Moreira Alves - e que
alguma reação estava sendo preparada."
Em cima da jabuticabeira
Márcio Moreira Alves não esperou a
reação do governo - na verdade, nem esperou o fim da votação na Câmara dos
Deputados, em Brasília. Na manhã de 12 de dezembro ele pronunciara seu
derradeiro discurso, escrito a quatro mãos com o jurista Oscar Pedroso Horta,
em que defendia seu mandato e a honra do Parlamento. À tarde, ao fim da sessão,
os deputados vitoriosos (entre eles 76 da Arena) começaram a entoar o Hino
Nacional. Nas últimas estrofes, Márcio Moreira Alves já corria pelos corredores
do Congresso em companhia do deputado Martins Rodrigues, também do MDB. Os dois
foram até o aeroporto de Brasília. Ali, ele tomou um monomotor e seguiu para Ribeirão
Preto, no interior do estado de São Paulo. "Naquele momento, era questão
de vida ou morte", diz. "Sabia que, tendo sido escolhido como bode
expiatório pelo regime, seria uma das primeiras vítimas dele." O último
político a deixar a Câmara dos Deputados, naquele dia 12, foi o então líder do
MDB, Mário Covas, que deixou o prédio apenas depois de rasgar e atear fogo aos
documentos que tinha na gaveta.
De Ribeirão Preto, Márcio Moreira Alves
foi levado num Fusca 68 para uma fazenda em Campinas, de propriedade do
conselheiro Antônio Prado, com quem tinha parentesco distante. Na manhã de 13
de dezembro, Márcio Moreira Alves foi resgatado na fazenda pelo deputado
Francisco Amaral. É o próprio Moreira Alves quem descreve a cena em seu livro
68 Mudou o Mundo, publicado em 1993: "Encontrou-me trepado em uma
jabuticabeira na beira da piscina, tranqüilo, na certeza de que os
entrelaçamentos das relações de parentesco da classe dominante brasileira, que
eu aproveitara, eram impenetrável mistério para a polícia política".
Márcio Alves assistiu à apresentação do AI-5, na voz de Alberto Curi, num
televisor na casa de Francisco Amaral, tomando cerveja quente e comendo
sanduíche.
Terminado o anúncio, virou-se para
Amaral e disse: "É, não dá mais". Imediatamente Amaral telefonou para
um amigo dentista militante do MDB, já falecido (José Roberto Teixeira,
ex-prefeito de Campinas), e pediu ajuda. Teixeira, conhecido como Grama, tinha
uma garçonnière no centro da cidade - Márcio Moreira Alves permaneceu ali uma
semana e depois fugiu para o exílio. Retornaria ao Brasil, já como jornalista
(hoje escreve para O Globo), apenas em setembro de 1979.
"Hoje eu quero a pressão
alta"
Enquanto Márcio Moreira Alves descia da
jabuticabeira, no Palácio Laranjeiras o presidente Costa e Silva recebia o
chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Emílio Garrastazu Médici.
"O senhor não caiu durante a noite porque é o senhor, outro no seu lugar
teria caído", disse Médici. Às 11 horas, vindo de uma cerimônia na Escola
Naval, Costa e Silva convocou uma reunião com Augusto Radmaker, ministro da
Marinha, Lyra Tavares, ministro do Exército, Márcio de Mello e Souza, ministro
da Aeronáutica, Médici, chefe do SNI, Jayme Portella, chefe da Casa Militar, e
Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil. O ministro da Justiça, Gama e Silva,
também chamado para essa reunião, chegou com atraso de 15 minutos. Entrou no
gabinete do presidente da República esbaforido. Costa e Silva brincou com a
demora de Gama e Silva e pediu que ele apresentasse sua sugestão para o ato que
se preparava. Gama e Silva leu o esboço do texto que havia preparado. Lyra
Tavares argumentou: "Assim você desarruma a casa toda". Ato contínuo,
Costa e Silva pediu a cada uma das pessoas naquela sala a sua opinião sobre o
que Gama e Silva acabara de ler. Por 3 votos a 2 (Radmaker e Márcio Mello
aceitaram o projeto de Gama), o documento do ministro da Justiça foi rechaçado.
O presidente solicitou a seu chefe da Casa Civil, Rondon Pacheco, que ajudasse
Gama e Silva a preparar uma segunda versão - a definitiva.
O que havia na primeira versão do ato,
chamada por Gama e Silva de "ato adicional 2", que desarrumava a casa
toda? É Rondon Pacheco, hoje aposentado, quem diz: "Gama e Silva
inspirou-se num ato semelhante que existira na Argentina - ele propunha a
dissolução do Congresso, a intervenção direta em todos os estados e o recesso
do Supremo Tribunal Federal - era inaceitável". O AI-5 em sua versão final
impunha o recesso do Congresso (não sua dissolução) e, ainda que suspendesse o
habeas-corpus, mantinha em funcionamento o Supremo Tribunal Federal (mesmo que,
na prática, ele tenha se tornado inútil). Às 13 horas, terminada a reunião,
Gama e Silva juntou-se a Rondon Pacheco numa das salas do Palácio Laranjeiras
para rascunhar o AI-5. "Lembro-me de que o Gama e Silva atendia a inúmeros
telefonemas com sugestões de emendas ao ato", diz Rondon Pacheco.
"Eram telefonemas da área militar." O chefe da Casa Civil sugeriu
que, no texto do ato, se colocasse o prazo determinado de um ano para sua
vigência. A sugestão não foi acatada e se decidiu que ela seria discutida na
reunião do Conselho de Segurança Nacional convocada para as 17 horas na
biblioteca em estilo Luís XVI no pavimento superior.
Pouco antes, segundo relato de Jayme
Portella, chefe da Casa Militar de Costa e Silva, o capitão Elcio Simões,
médico particular do chefe de Estado, informou que o presidente estava com a
pressão muito alta e que precisava ser medicado. Costa e Silva disse,
brincando: "Não quero remédios para a pressão, hoje preciso dela bem
alta". E foi ouvir música clássica e terminar as palavras cruzadas, dois
de seus hábitos, até o início da reunião do AI-5.
(CONTINUA). PARTE 1 - Arquivo do dia 25 de julho de 2012
(CONTINUA). PARTE 1 - Arquivo do dia 25 de julho de 2012
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