Artigos - Educação
A mensagem abaixo - escrita na primeira pessoa do singular, mas assinada por duas professoras -, foi enviada ao ESP sob o título “Direito de resposta ao artigo 'Conteúdo imoral na escola'”, publicado na Gazeta do Povo; em azul, os comentários do coordenador do ESP, Miguel Nagib.
Li a reportagem publicada no jornal gazeta do povo, dia 18 de novembro, pelo advogado Miguel Nagib. Fiquei chocada, revoltada, indignada com o que o senhor advogado escreveu sobre a profissão que escolhi. Uma coisa é ficar revoltado com fatos, que digo isolados, outra coisa é generalizar.
1 - Não escrevi nada sobre a profissão que a senhora escolheu. Afinal, ensinar aos filhos dos outros o que é boquete, sexo anal, e coisas do gênero não faz parte das atribuições de um professor. Ao contrário: se fizer isso sem estar autorizado pelos pais dos alunos, o professor estará infringindo o art. 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
2 - A senhora não pode afirmar que os fatos mencionados no meu artigo sejam isolados. O livro “Mamãe, como eu nasci?”, de onde foram tiradas as frases em destaque no parágrafo seguinte da sua mensagem, foi adotado, por exemplo, pela rede municipal de ensino de Recife. Não me parece que seja pouca coisa.
3 - Além disso, como é impossível saber o que acontece a cada instante em todas as salas de aula, temos obrigação supor que esses fatos podem estar ocorrendo em muitas escolas, principalmente porque não faltam "especialistas" com a mentalidade do Sr. Marcos Ribeiro, autor do livro "Mamãe, como eu nasci?". Repito o que disse no artigo: “pelos ‘vazamentos’ podemos estimar o volume e a qualidade do esgoto moral que circula pelas tubulações do sistema de ensino”.
4 - Em todo caso, a senhora mesmo reconhece que “grande parte da educação de valores que as crianças têm recebido, quem lhes garante é a escola”. Ou seja, reconhece que a violação ao art. 12 do CADH é uma realidade nas escolas brasileiras; e é isso o que importa.
Concordo que os fatos mencionados no segundo parágrafo da matéria são absurdos:
“...Em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, um professor de Educação Física resolveu fazer uma “brincadeirinha” com seus alunos: quem errasse a jogada tinha de responder a perguntas como “você é virgem”?” ou “já fez sexo oral em Fulano?” Em Recife, crianças de 7 a 10 anos aprendem em sala de aula que “brincar com o pênis e com a vulva é gostoso” e que “o papai acha muito gostoso quando seu pênis fica duro”.
Em Contagem (MG), o dever de casa dos alunos do 4.º ano de uma escola municipal – falamos de crianças de 10 anos – é responder “o que é sexo anal”, “o que é boquete“ e “como dois homens fazem sexo”.” Não é a maneira correta, indicada a trabalhar um assunto que é obrigatório e faz parte do currículo escolar que gera tantas dúvidas, tantas perguntas, e é tido ainda como tabu pela maioria das famílias.
5 - A senhora acha absurdos os fatos mencionados no artigo, mas muitos dos seus colegas de magistério defendem com unhas e dentes o ensino desse tipo de conteúdo nas escolas. Veja, por exemplo, a opinião da orientadora pedagógica da escola de Contagem-MG.
6 - A senhora se engana ao afirmar que esses assuntos são obrigatórios. Ao contrário: obrigatório, de acordo com o art. 12 da Convenção, é NÃO tratar desses assuntos em disciplina obrigatória. Se o governo quiser usar o sistema de ensino para promover uma agenda moral, deve fazer isso por meio de uma disciplina facultativa.
7 - Os professores não podem ser obrigados por quem quer que seja a transmitir aos alunos conteúdos que se choquem com a sua própria consciência moral: para isso é que existe a garantia constitucional da liberdade de cátedra.
8 - Por outro lado, as famílias têm todo o direito de não querer que esses assuntos sejam abordados em sala de aula. A tentativa de desqualificar essa escolha com o rótulo de “tabu”, além de claramente preconceituosa, é reveladora do quanto vocês, educadores iluminados, se consideram superiores aos pais dos seus alunos.
Mas caro senhor advogado, não queira citar o referido artigo 12 da Convenção Americana de Direitos Humanos para embasar sua crítica, quando a realidade é justamente o contrário.
Atualmente, grande parte da educação de valores que as crianças têm recebido, quem lhes garante é a escola.
9 - “Garante”? A senhora acha que a escola está fazendo um grande bem às crianças ao usurpar a autoridade moral dos seus pais?
10 - Peço licença para citar a Prof. Olga Pombo, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa: “A educação para valores é um disparate! O grande valor que o professor tem a ensinar é o valor do conhecimento.”
No cotidiano das escolas públicas o que mais encontramos são famílias desestruturadas, e não estou me referido a falta do modelo nuclear de família (pai, mãe, filhos). Refiro-me a falta de condições de saúde, higiene, social, falta de estrutura familiar, onde para seu conhecimento, caro advogado e para quem não é da área, não é incomum encontrarmos crianças que são plateia durante o ato sexual de seus pais.
11 - Ainda que essa fosse a situação de todos os alunos -- e não o é sequer da maioria --, os professores não poderiam usurpar o direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com as suas convicções.
12 - Faça o seguinte, professora: se a senhora quiser ajudar essas crianças, ensine-as a ler, escrever e fazer conta. Se fizer isso, já está ótimo.
Desta maneira o senhor vem propor que se retire a disciplina (ou conteúdo) de educação sexual?
13 - Na verdade, eu não estou propondo coisa nenhuma; só quero que a lei seja cumprida.
É neste momento que as crianças podem tirar suas dúvidas, já que em casa, mesmo assistindo o ato sexual, elas são proibidas de tocar no assunto.
14 - A senhora acredita mesmo que as crianças precisam de um professor para tirar esse tipo de dúvida? Eu diria que elas precisam de um professor para lhes ensinar Português e Matemática, e que informações sobre sexo elas vão obter de um jeito ou de outro, como nós obtivemos.
15 - A senhora argumenta como se 9 em cada 10 crianças presenciassem regularmente cenas de sexo em casa, e tivessem necessidade de ser esclarecidas a respeito, o que evidentemente não corresponde à realidade.
16 - Além disso, nem todas as crianças têm o mesmo tipo de dúvida ou curiosidade na mesma época da vida. Assim, ao tratar desses assuntos em sala de aula, o professor está nivelando o conhecimento de todos pela demanda de alguns, e isso, além de caracterizar uma violação ao art. 12 da CADH, configura um desrespeito à individualidade e ao processo de amadurecimento de cada aluno, o que ofende o Estatuto da Criança e do Adolescente.
E, ao contrário do que o senhor advogado afirma, não foram os professores que “decidiram educar nossos filhos por nós”, foram às [sic] famílias, algumas em virtude das obrigações do dia-a-dia de seus trabalhos, outras por puro comodismo, que delegaram estas funções à escola.
17 - A senhora tem tanto direito de presumir que os pais dos seus alunos lhe delegaram a função que lhes cabe na formação moral dos seus filhos, quanto de se apropriar de um objeto que foi confiado à sua guarda.
18 - A única forma legítima de a escola tomar para si essa função inerente ao pátrio poder é perguntar formalmente aos pais dos alunos se eles concordam que esse conteúdo seja ensinado aos seus filhos. Mas antes, é claro, os pais têm direito de conhecer esse conteúdo ponto por ponto. A julgar pela reação da sociedade ao kit gay, eu diria que muitos não vão concordar.
E me espanto com sua opinião a cerca [sic] da escola, respeitado advogado, ao comparar a escola com um esgoto. Ao que se ensina, com lixo. O que vaza das escolas, os vazamentos das redes de ensino... Muito fácil é criticar a roupa da vizinha, que está suja, mas esquece-se de olhar para sua janela e verificar que, na realidade, é sua vidraça que se encontra imunda.
19 - Por favor, professora, leia de novo o meu texto, e veja se eu comparei escola com esgoto, e o que se ensina com lixo. Agora, se o problema for de má-fé, esqueça.
Em todas as profissões encontramos bons e maus profissionais, mas isso não quer dizer que todos cometem o mesmo erro. Quando um médico comete um erro em uma operação quer dizer que todos os médicos são relapsos? Ou quando um advogado passa a perna ou engana um cliente, quer dizer que todos são de índole duvidosa ou desonestos?
Mas, muito fácil, prático, e lucrativo para alguns, é propor processos, multas. Se vamos processar que comecemos então pelos pais negligentes com a saúde de seus filhos, com a educação deles... Para quando houver 100% de pais presentes, que levem seus filhos ao dentista por causa daquela dor de dente que vem sendo informada há duas semanas pela escola, ao pediatra quando lhes é informado sobre caroços com mau cheiro na cabeça de seus filhos, aí sim pensem em processar os professores/escolas por algo que foi dito, ou feito em sala.
Até porque, se cada professor que fosse ofendido em nosso país abrisse um processo certamente faltariam respeitados advogados para representar e acompanhar esses processos.
20 - Não é uma questão de bons ou maus profissionais; é uma questão de limites. Os pais têm direito de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Os professores não podem usurpar esse direito.
Até então, os professores têm exercido outros papéis além do de professores. Têm sido muito mais psicólogos que professores. Têm sido muito mais assistentes sociais que professores.
21 - E têm falhado vergonhosamente em ser apenas... professores! Basta ver o desempenho dos estudantes brasileiros.
Ou, vamos nós professores, começar a ajuizar ações contra os pais de nossos alunos, por negligencias em diversos aspectos, propondo multas por não levarem seus filhos à escola, por não levarem ao médico, por não levarem ao dentista, por não levarem ao psicólogo, neurologista, fonoaudiólogo, oftalmologista... E assim por diante. Seria justo, já que, seremos processados e/ou multados por ensinar o que os pais se recusam a fazer em casa.
22 - Nunca lhe ocorreu que se os pais se recusam a ensinar certas coisas aos seus filhos é porque acham que não devem fazê-lo?
Só quem está em uma sala de aula com mais de 30 alunos, sabe como é difícil o nosso trabalho. Pessoas que nunca tiveram [sic] nessa situação não podem falar muito, mas seria bom se todas as pessoas pudessem passar alguns dias em uma sala de aula para depois poder da [sic] sua opinião, até porque toda versão sempre tem dois lados.
23 - Ninguém precisa entrar numa sala de aula para saber o que está escrito no art. 12 da CADH. Aliás, ninguém precisa ter lido o art 12 da CADH para saber que cabe aos pais dar aos seus filhos a formação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Isso é um direito natural, inerente, como eu disse, ao pátrio poder.
24 - A propósito, gostaria de citar mais uma frase da Prof. Olga Pombo:
«Fechar a porta de uma sala e ter lá dentro 20 ou 30 crianças e um professor mais velho é um fenômeno muito estranho, em que muito pouca gente pensa. (...) Portanto, eu sou completamente contrária à ideia de abrir a escola ao meio e a toda essa conversa fiada que, em última análise, só serve para desmantelar esse lugar mágico que é a sala de aula.»
O que nossa sociedade está esquecendo é que para formar todos os profissionais existentes, e para que as pessoas possam refletir e escrever aquilo que quiserem em uma folha de papel, ela precisou do auxilio de um professor que sem nenhuma valorização, sendo ofendido diariamente por pais, alunos e sociedades, que leva nas costas a responsabilidade por uma sociedade que está em pleno caos e vivendo em uma época de barbárie, mas que apesar de tudo isso, com muita dedicação, amor e respeito, possibilita aquisição desse conhecimento.
Fica aqui registrado não só a minha, mas a indignação de muitos profissionais que fazem o possível e o impossível pela educação desse país.
25 - Confesso que suas palavras não me comovem. Não sou especialmente grato pelo trabalho dos professores. Que eu saiba, ele é remunerado. Tive bons e maus professores. Mais maus do que bons, infelizmente. Meus filhos também. Socialmente falando, o resultado do trabalho de vocês é vergonhoso, para dizer o mínimo. Cito apenas um dado: quase 40% dos estudantes universitários brasileiros “não dominam habilidades básicas de leitura ou escrita. Ou seja: são analfabetos funcionais.”
26 - Repito, professora: se a senhora realmente deseja ajudar seus alunos, principalmente os mais pobres, ensine-os a ler, escrever e fazer conta. E deixe que o resto eles aprendem sozinhos ou com seus pais.
01 de dezembro de 2012
Miguel Nagib, advogado, é coordenador do grupo Escola Sem Partido.
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