PARTE 1
As gravações inéditas da reunião do
Conselho de Segurança Nacional que promulgou o ato contam a história do decreto
que pôs o Brasil na escuridão
Há dias que se transformam em marcos na
cabeça das gerações que os vivem. Nos Estados Unidos é comum as pessoas
lembrarem onde estavam em 22 de novembro de 1963, quando o presidente John
Kennedy foi assassinado.
Os portugueses transformaram o 25 de abril de 1974, a
data da Revolução dos Cravos, em substantivo próprio. Na História recente do
Brasil, o 13 de dezembro de 1968 é um desses dias que abraçam o mundo e um
sentimento.
Naquela data, o governo militar do presidente Arthur da Costa e
Silva decretou o AI-5 - o ato institucional que deu plenos poderes ao chefe de
Estado, pôs o Congresso Nacional em recesso, suspendeu o recurso jurídico de
habeas-corpus e iniciou uma infindável leva de cassações políticas. O dia do
AI-5 trouxe a treva ao Brasil. A partir dele, e durante dez anos, os militares
mandaram no país com mão de ferro.
O AI-5 foi o instrumento responsável
por tirar de cena uma geração inteira de políticos, estabeleceu a censura e
permitiu que a tortura fosse usada como arma de combate àqueles que lutavam
contra o regime das fardas. Na definição do presidente Fernando Henrique
Cardoso, foi uma noite escura: "Foi uma noite escura porque houve
repressão, censura e violência de todo tipo, o que gerou o terrorismo e uma
série de movimentos que tinham o objetivo de mudar o regime autoritário mas que
acabaram contribuindo, de alguma maneira, para o contrário e foram esmagados
violentamente, também por tortura e morte".
Época teve acesso, com exclusividade, à
íntegra das gravações da sessão do Conselho de Segurança Nacional que, naquela
tarde de 13 de dezembro de 1968, no Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro,
apagou a luz no Brasil.
Não se trata de grampo. É uma gravação legítima,
aberta, feita por dois aparelhos colocados na mesa de mogno à frente de Costa e
Silva cujos microfones circularam, de mão em mão, entre os 23 ministros. No
livro 1968, O Ano que Não Terminou, de 1988, o jornalista Zuenir Ventura já
tinha relatado momentos daquela reunião histórica.
Pela primeira vez, agora,
ela aparece em sua totalidade. Nas páginas seguintes, nos quadros em verde, nas
laterais, selecionamos os principais trechos do voto dos ministros. Na Internet
(www.epoca.com.br), estão os pareceres completos e longas porções em áudio. É
um documento impressionante pelo ambiente tenso (há ruídos de sirene ao longo
da reunião) e pelo contéudo. Era o governo impondo, na marra, os rumos do país.
Nem todos os 24 homens sentados na
biblioteca do Palácio das Laranjeiras, no segundo andar do edifício, falavam a
mesma língua. Os militares queriam o AI-5 para calar a subversão à força.
"Se não tomarmos neste momento esta medida que está sendo aventada, amanhã
vamos apanhar na cara", disse o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas,
Orlando Geisel. Para os ministros civis, tratava-se de uma decisão
constrangedora mas inevitável.
Tornou-se célebre o trecho que vazou do
depoimento do ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, coronel da reserva, para
quem a decisão era "...ditatorial, mas às favas, senhor presidente, todos
os escrúpulos de consciência".
O então ministro da Fazenda, Delfim Netto,
disse o seguinte: "Estou plenamente de acordo com a proposição, mas diria
mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos dar ao
presidente da República a possibilidade de realizar certas mudanças
constitucionais que são absolutamente necessárias...", afirmou.
O próprio Delfim explica, hoje, o que
pretendia ao dizer que a medida não era suficiente. Por que não era suficiente?
"Queria fazer do limão uma limonada, aproveitar o AI-5 para incluir nele
emendas que permitissem reformas tributárias vitais para o país, como a do
ICMS", diz ele, hoje deputado federal pelo PPB. O único voto contrário ao
AI-5 foi o do vice-presidente Pedro Aleixo, que preferia o estado de sítio.
Ao
chegar em casa, na noite da reunião, ele disse à mulher: "Hoje fechei
definitivamente as portas do Palácio do Planalto para mim". Tinha razão.
Em agosto de 1969, com a doença de Costa e Silva e seu afastamento do poder, os
três ministros militares não deixaram que Aleixo assumisse o comando do país.
Era o AI-5 gerando outra vítima.
Acompanhe, a seguir, o dramático desenrolar do
dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira quente, no relato dos homens que o
fizeram - de um lado e do outro da sociedade brasileira. Depois daquele dia, o
país nunca mais seria o mesmo.
A voz e o dono da voz
Alberto Curi, locutor oficial da Voz do
Brasil, decidira aproveitar a sexta-feira 13 para limpar o galinheiro do
quintal de sua casa, no bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Às 17 horas,
um carro da Presidência da República estacionou em frente à residência. "O
presidente mandou chamar o senhor", disse o ajudante-de-ordens. "Mas
o que está acontecendo?", perguntou Curi. "Não sei, mas o próprio
presidente Costa e Silva pediu para levá-lo ao palácio." O locutor tomou
banho, fez a barba, pôs terno e gravata e somente depois do asseio dirigiu-se
ao Palácio Laranjeiras.
Chegou ali ao redor de 18h30. Enquanto esperava, lhe
ofereceram bife a cavalo com fritas. O presidente mandou convocá-lo ao
gabinete, no andar superior do palácio, apenas às 21h45. Era a primeira vez que
o locutor oficial e o chefe de Estado se encontravam pessoalmente. "O
senhor parece mais jovem do que na televisão", disse Costa e Silva,
habituado a acompanhar Curi pelos anúncios oficiais, na telinha em
preto-e-branco, e também pela Voz do Brasil e pela leitura do Diário de um Repórter,
de David Nasser, ambos no rádio (Curi, a rigor, servia a dois amos - às 7 e
meia da noite dava as notícias do governo para, logo em seguida, aparecer
interpretando as violentas críticas de Nasser, um jornalista que se
aperfeiçoara em soltar disparos contra o regime militar).
Costa e Silva fez o comentário sobre a
boa aparência de Alberto Curi, abriu uma pasta e lhe entregou 18 laudas batidas
a máquina, em tipologia maior que a normal, com anotações a lápis nas laterais.
Era o Ato no 5. "Presidente, posso me preparar? Gostaria de lê-lo
antes", pediu Curi. "Não, senhor, não temos tempo - as câmeras de TV
e os microfones das rádios já estão a postos, vamos entrar ao vivo em cadeia
nacional." Curi foi imediatamente levado ao Grande Salão de Visitas, no
andar térreo do Palácio Laranjeiras. Ali o colocaram atrás de uma mesa de
mármore.
Às suas costas, pontificava uma tela a óleo de Luís XIV, pintada pelo
francês Hyacinthe Rigaud. Eram 10 da noite quando o ministro da Justiça, Luiz
Antonio Gama e Silva, chegou à sala e sentou-se ao lado do locutor. O AI-5
seria finalmente anunciado ao país inteiro. Gama e Silva fez uma rápida
introdução de 5 minutos e passou a palavra a Alberto Curi.
Foram, então, 18
minutos sem um único erro, em tom monocórdio e solene. Sem "boa-noite".
À frente da mesa, na outra ponta do salão amparado por colunas de ônix claro,
estava o ministério inteiro, em pé - os ministros militares à frente. "Os
olhares me fuzilavam, a tensão naquela sala era imensa", disse Curi a
Época há um mês, dez dias antes de morrer de infarto, aos 72 anos.
Era a
primeira vez, em 30 anos, que ele voltava ao Salão de onde o Brasil viu e ouviu
o Ato Institucional no 5. "Enquanto lia, tomava conhecimento das medidas -
no início, quando estava nos 'considerando', achei normal, sereno. Quando
começei a ler o ato propriamente dito, com os 'decido', é que me dei conta do
que se anunciava. Mas não podia gaguejar. Ali eu era apenas uma voz com salário
mensal de 300 cruzeiros. O dono da voz era o presidente da República."
Fábio Altiman
25 de julho de 2012
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