"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 26 de abril de 2013

UM INFERNO CHEIO DE BOAS INTENÇÕES

 

Jose NeumannePinto
A presidente Dilma Rousseff não compreendeu a evidência que emergiu das urnas venezuelanas na última eleição presidencial. A Venezuela é – sempre foi – um país dividido ao meio.
Nos últimos anos, o carisma de Hugo Chávez, apoiado numa capacidade de comunicação e numa loquacidade similares às do compadre dele e padrinho dela Luiz Inácio Lula da Silva, fez a balança pesar mais para o seu lado.
Mas sua morte restaurou o equilíbrio de antanho e de nada adiantaram os truques continuístas incorporados às instituições políticas e eleitorais do país pelo comandante bolivariano para evitar que a calamitosa situação econômica se refletisse nas urnas.

A pequena margem da maioria de Nicolás Maduro sobre Henrique Capriles e o fato de ela contrariar o resultado de pesquisas de boca de urna não caracterizam, por si sós, ter a contagem de votos sido fraudada.
Mas também não faltaram evidências de uso abusivo da máquina pública em favor do presidente reeleito. Só o fato de ter ele feito propaganda partidária à véspera do pleito na televisão pública evidencia a quebra de um conceito elementar de uma disputa eleitoral numa democracia digna dessa denominação: a igualdade de oportunidades para quem dispute a preferência do eleitor.

Não dá para questionar a legitimidade da escolha de Dilma para presidir o Brasil. Mas a lisura dos resultados eleitorais brasileiros, que nunca foi posta seriamente em dúvida, não a autoriza a apoiar, em nome da Nação toda, nenhum dos lados numa eleição sobre a qual paire alguma dúvida.
Até porque a votação foi parelha demais e a evidência dessa igualdade exige um mínimo de respeito democrático a quem optou pela substituição do escolhido por Chávez por um oposicionista. Dilma não é presidente apenas de quem a sufragou.
Vigendo neste país uma democracia de fato, e ninguém tem o direito de duvidar disso, ela governa em nome de todos. Só que não deveria usar esse peso para ajudar um amigo ou parceiro de crença ideológica.

Não faltaram evidências de uso abusivo da máquina pública em favor do presidente reeleito
Ainda mais quando o amigo e companheiro apoiado levou a ferro e fogo até a última faísca a convicção que ela mesma já expressou, em plena campanha antecipada para continuar no poder, de que é lícito “fazer o diabo” para ganhar uma eleição.
Felizmente, o Brasil não é a Venezuela. As instituições de nosso Estado Democrático de Direito não permitem a licenciosidade de que os bolivarianos lançaram e lançam mão no país vizinho para controlar Judiciário e Legislativo como se fossem não Poderes autônomos, mas instâncias subordinadas aos mandatários do Executivo.
E, Dilma seja louvada, a livre comunicação nestas plagas impede que nossos governantes transgridam as leis.

Convém, no entanto, que as forças vivas da sociedade brasileira atentem para manobras, nem sempre muito sutis, às quais a aliança que sustenta o governo federal, com fome e força de leão, apela para não largar o osso suculento das presas da caçada institucional.
Tudo tem sido feito no atual governo para assegurar à sua chefe a vitória – e sem ter de disputar segundo turno – no pleito federal do ano que vem.
Diante da perspectiva de retirada do aliado histórico Eduardo Campos, presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e governador de Pernambuco, a chefe do governo tratou de ampliar sua base de sustentação atraindo para o palanque o Partido Social Democrático (PSD), do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab.
E de manter a sociedade com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com direito ao bis de vice.

Para evitar deserções ela tratou ainda de jogar no lixo as abandonadas intenções de sanear a Esplanada dos Ministérios, trazendo de volta para lá os maiorais do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e do Partido da República (PR), que haviam sido defenestrados em nome da decência cívica e da probidade administrativa.

E da mesma forma que abre mão de nobres princípios assumidos como bandeira no início de seu governo, Dilma Rousseff também recorre ao pretexto de uma providência necessária para reduzir o déficit de representatividade na democracia nacional apenas para atender ao mais deslavado oportunismo.
Com a mesma desfaçatez com que cria ministérios para abrigar o maior número de partidos na base governista, a presidente levou a Câmara dos Deputados a aprovar a toque de caixa novas regras para impedir que ex-aliados e eventuais adversários no futuro inflem seus palanques.

A lei aprovada na Câmara e encaminhada ao Senado modificando os critérios de distribuição das verbas do Fundo Partidário e dos segundos no horário da propaganda partidária no rádio e na televisão é a mais deslavada prova de acerto da filosofia avoenga segundo a qual “de boas intenções o inferno está cheio”.
Prova-o o emprego de dois pesos e duas medidas no tratamento de sombra e água fresca dado ao futuro aliado Kassab, oposto à dieta de pão e água a que submeterá os ex-companheiros de jornada Eduardo Campos e Marina Silva.
Com direito ao cínico comentário do ministro-chefe da Secretaria da Presidência, Gilberto Carvalho, que atrelou o expediente malandro de desfalcar desde já adversários prováveis de daqui a 18 meses ao preceito democrático da fidelidade partidária, corretíssima demonstração de respeito à soberana vontade da cidadania.

Ainda que o presidente do PSDB de Minas, deputado Marcus Pestana, exagere ao comparar a iniciativa de Dilma ao “pacote de abril”, que garantiu à ditadura militar a vitória eleitoral em 1977, mas não lhe assegurou a sobrevivência, o casuísmo continuísta excede em cuidados.
Como a reeleição da presidente é muito provável, mesmo que só ocorra no segundo turno, essa pressa toda na corrida de sede ao pote deixa no ar um preocupante desapreço à igualdade de oportunidades, sem a qual a democracia é uma falsa ilusão enganosa e injusta.

26 de abril de 2013
José Nêumanne Pinto
Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/04/2013

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