A revista CartaCapital homenageou com matéria de capa alguns deputados que honram os mandatos: Romário, Jean Willys, Tiririca (“Surpresas da política”, edição nº 744, de 12/4/2013). A surpresa é o pano de fundo, pois não se esperava, pelo visto, que personagens da esfera público-publicitária nacional – um ex-jogador de futebol, um ex-astro de reality show e um ex-palhaço – pudessem revelar competência legislativa. Observam-se aí traços de uma questão maior, com aspectos variados, do que comportamentos individuais.
O primeiro aspecto remete à degradação da representatividade no quadro do parlamentarismo democrático. Não é novo o fenômeno. Já na primeira metade do século passado, o alemão Carl Schmitt (um dos grandes politólogos da época e muito lido até hoje) havia feito o prognóstico de que o parlamentarismo conduz necessariamente ao centro político e à corrupção. Não se trata apenas de corrupção financeira, mas da própria degradação do sistema.
A argumentação de Schmitt acabou aproveitada pelo nazismo, mas jamais foi devidamente desmontada. A democracia representativa tem as suas imperfeições, mas não se conhece melhor alternativa, diz-se.
Bem mais recentemente, no começo dos anos 1990, quando o PT se lançou com Lula na disputa pela Presidência da República, o francês Alain Badiou, militante político e autor de destacada produção intelectual na atualidade, em visita ao Brasil, jogou mais alguma lenha nessa fogueira.
Badiou é de linhagem maoísta, conviveu com todo tipo de organização de esquerda, mas no debate que travou em Belo Horizonte com o sociólogo Ronald Rocha, não ficou muito distante do pensamento de Schmitt.
Badiou partia da premissa seguinte:
“Na política, há sempre três elementos. De
início, há as pessoas, aquilo que elas fazem, o que pensam, o conjunto de suas
atividades concretas, o conjunto da vida popular. Em segundo lugar, há as
organizações. Organizações que tentam formular perspectivas coletivas: os
sindicatos, as associações de bairros, os grupos, os comitês e, finalmente, os
partidos políticos. Em terceiro lugar, há os órgãos do poder do Estado, os
órgãos constitucionais e oficiais do poder: as Assembleias Legislativas, o poder
do presidente, do governo e o conjunto dos poderes locais (...) Podemos dizer
que toda a política será uma articulação desses três elementos” (Vide
Política – partido, representação e sufrágio, Editora Projeto,
1995).
Marco simbólico
O detalhamento da argumentação é longo, mas se pode dizer em resumo que, como todo esse processo está subordinado ao Estado, a alternância do poder exclui a ruptura, ou seja, não muda nada de substancial, apenas assegura a continuidade do mando estatal. Badiou deixava implícito que, mesmo um partido progressista como o PT, uma vez chegado ao poder, perderia qualquer ímpeto emancipatório. Claro, houve muitos argumentos contrários durante o debate, mas não é preciso nenhuma teoria para se avaliar o prognóstico do francês: basta ler jornal.
Apesar disso tudo, o sistema hegemônico ainda é teoricamente capaz de manter as aparências da representação democrática por meio de comportamentos mais sisudos – ditos “éticos” – e de uma retórica pública mais afinada com a escolarização. Mas a entrada em jogo de elementos novos – a heterogeneidade crescente da origem social no processo eleitoral e a influência da mídia – tem evidenciado, particularmente desde a década de 1980, a saturação das formas parlamentaristas.
O local, o imediato, os lobbies e as estatísticas de “opinião” impõem-se na razão direta do declínio de organizações como sindicatos e partidos e, ao mesmo tempo em que deixam na sombra a sisudez (solenidade, aparências morais) dos discursos políticos, dão lugar à extravagância das imagens.
Talvez o marco simbólico dessa mutação tenha sido a eleição, muitos anos atrás, de “Cacareco”, um rinoceronte do Jardim Zoológico carioca. O fenômeno estava fadado a repetir com novos derivativos, novos personagens.
Sem importância
Teóricos franceses da pós-modernidade andaram chamando esse fenômeno de “transpolítica”, isto é, a política além de si mesma, a apreensão do político em sua desimportância ou em sua queda moral na irrisão. Há mesmo a estranha hipótese de que as massas se disporiam a eleger aqueles de quem possam rir. Voltado para o picadeiro, o voto que, desde Schmitt não conseguiria realmente mudar grande coisa, deixaria agora de ser politicamente correto.
A edição nº 744 de CartaCapital nos diz, entretanto, uma outra coisa: o inesperado é uma caixa de surpresas, é preciso ficar atento ao extraordinário. Se está morrendo o circo tradicional (aquele das curiosas famílias que acampava nos terrenos baldios das cidades e encantava a meninada), é admissível como hipótese que a atividade circense migre como arte para novos tipos de espetáculo (modelo Cirque Du Soleil) ou, por que não, para o âmbito legislativo.
Do ponto de vista da continuidade conservadora do Estado, a alternância da sisudez com o grotesco não tem importância alguma.
26 de abril de 2013
Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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