"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sexta-feira, 26 de abril de 2013

A POLÊMICA SOBRE BIOGRAFIAS

 

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (23/4) pela TV Brasil discutiu a chamada Lei das Biografias [ver o vídeo aqui]. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou no início de abril, em caráter conclusivo, um projeto de lei que permite a exibição de cinebiografias ou biografias impressas sem a autorização prévia do personagem retratado ou de sua família.
O projeto vale para biografias de pessoas públicas, como políticos e artistas. A proposta seguiria para o Senado Federal, mas o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) apresentou um recurso solicitando que o texto seja analisado pelo plenário da Câmara.
Para o deputado, o projeto é polêmico e alguns pontos precisam ser discutidos, como a retratação por possíveis ofensas e as biografias de pessoas com dimensão política.

A data para que a tramitação do projeto de lei seja desemperrada ainda não foi definida. A Lei das Biografias altera artigo 20 do Código Civil, que está em vigor desde 2002. O texto só permite a produção de biografias com autorização direta do personagem ou de seus parentes.
Uma série de biografias de personagens importantes da história do país foi proibida antes mesmo de chegar a público, como as de Guimarães Rosa, Ana de Assis, Noel Rosa , Raul Seixas, Garrincha, Lampião, Di Cavalcanti e Roberto Carlos.
Em paralelo ao projeto, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) propôs ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para pôr fim à censura prévia das biografias.

O programa contou com a presença do deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ), relator da Lei das Biografias na CCJ da Câmara dos Deputados. Molon é professor de Direito na PUC-Rio e também acompanha a elaboração do Marco Civil da Internet. No Rio de Janeiro, participou Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia Roberto Carlos em Detalhes, que teve a comercialização proibida pelo cantor em 2007, e Sergio Machado. Professor de História e jornalista, Paulo Cesar também é autor do livro Eu não sou cachorro, não, sobre a música brega.

Esta edição do Observatório da Imprensa na TV foi apresentada pelo jornalista Caio Túlio Costa, que substituiu Alberto Dines na bancada do programa. Dines está acamado e volta a comandar o programa em breve.

Pesquisa e fuxico

Em editorial, antes do debate ao vivo, Caio Túlio ressaltou que a Constituição brasileira garante a liberdade de expressão mas, muitas vezes, a Justiça atua de forma censória e desrespeita a Carta Magna. “A Lei das Biografias, que iria ao Senado logo logo, acaba de ser atropelada no caminho. Por conta de uma manobra no Congresso, deve ainda ser apreciada, sabe Deus quando, pelo plenário da Câmara dos Deputados antes de seguir ao Senado, conforme previsto até a semana passada”, explicou o jornalista [ver íntegra abaixo].

A reportagem exibida antes do debate no estúdio mostrou diversas opiniões sobre a Lei das Biografias. Gustavo Binenbojm, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ressaltou que o artigo 20 do Código Civil cria dois efeitos colaterais “perversos e deletérios” para a liberdade de expressão no país e para o mercado editorial.

“O primeiro efeito é criar um valor econômico para essas autorizações, o que encarece demasiadamente a publicação de qualquer obra de cunho biográfico”, disse o advogado. Para ele, o dispositivo não buscou um equilíbrio entre o direito à privacidade das pessoas e a liberdade de expressão dos autores.
Sônia Jardim, presidente do SNEL explicou que as editoras têm tentado se resguardar para evitar processos por conta dos honorários dos advogados e dos custos do recolhimento de obras proibidas.

“Ao invés de pegar um original e dar uma leitura editorial – ‘Ah, que história interessante, o que eu posso melhorar? No que eu posso contribuir com uma visão editorial para essa obra?’ – você olha com um olhar jurídico: ‘Isso aqui pode dar problema, esse pedaço é melhor cortar. Isso aqui está autorizado? Vamos cortar isso aqui’.

A gente acaba fazendo papel de censor e não de editor”, disse a presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. “Ao escrever um livro, você está registrando toda a história, não só do biografado, mas do ambiente onde ele viveu, da sociedade naquele momento que ele viveu, movimentos de que participou – culturais, políticos. Essas histórias, no momento em que os livros não são escritos, vão se perder para as gerações futuras. É lastimável”, disse.

Para o cineasta Silvio Tendler, que levou para as telas de cinema as biografias de importantes políticos, como os ex-presidentes Juscelino Kubistchek, João Goulart e Tancredo Neves, algumas proibições levam a situações surrealistas:
“Você tem, por exemplo, fotos que foram publicadas e exploradas pela imprensa e que hoje são proibidas de serem utilizadas porque algum dos herdeiros não gosta. Você tem, por exemplo, músicas que foram gravadas nos anos 1950 por autores famosos, cantores famosos cuja voz está sequestrada nos fonogramas que de herança a herança passaram para uma gravadora internacional”, exemplificou o cineasta.

Tendler comentou que, muitas vezes, a autorização depende de parentes que sequer conheceram o personagem: “Não é aquela família que conviveu com ele até a hora em que ele fechou os olhos. É a família que herdou direitos. Você tem gente que não olhava para a cara do biografado, nunca leu um livro, uma obra, não vê nenhum valor naquela obra, nenhuma importância. E, muitas vezes, até por razões de ressentimento, tenta impedir a divulgação dessa obra”.
O cineasta acredita que os autores precisam respeitar os limites de privacidade dos personagens retratados e dos descendentes. “Uma coisa é biografia, outra coisa é fuxico. A gente não está aqui para fazer fuxico, está aqui para fazer história”, disse Tendler.
 
Artifícios de marketing
 
Há oito anos, o jornalista Edmundo Oliveira prepara uma obra sobre o cantor Raul Seixas. Ao saber do trabalho, a família do músico enviou um telegrama avisando que acionará a Justiça caso a obra seja publicada.
“Me surpreendeu, mas eu não deixei de fazer o trabalho por causa disso”, assegurou o jornalista. Edmundo Oliveira contou que o canal de diálogo com a família ainda não foi fechado: “Eu quero entrevistar, queira ter o apoio deles, mas não no sentido de aprovarem ou não o livro, mas de entender que o Raul Seixas é um grande personagem da cultura brasileira, e que ainda não teve uma biografia à altura do personagem que ele é”.
 
Lira Neto, autor de biografias consagradas como as do ex-presidente Getúlio Vargas, da cantora Maysa e do padre Cícero Romão, também condenou o aparato jurídico em torno do conteúdo das obras. Atualmente, os autores precisam lidar com as ponderações do setor jurídico, que acaba atuando como um elemento de policiamento.
 “As personalidades públicas têm, necessariamente, que ter a sua vida estudada, trabalhada, e essas vidas têm um componente também público. Tem que se relativizar a questão do direito à privacidade quando se trata de personagens públicas, de personagens históricas”, propôs o jornalista.
 
De Londres, o correspondente Silio Boccanera explicou que no Reino Unido é inconcebível proibir a publicação de uma biografia por não haver autorização do biografado. O fato seria considerado censura. “Na prática, biografias não autorizadas já se transformaram em mecanismos de marketing.
 
As editoras divulgam com destaque que o biografado não concordou em cooperar para contar a história da sua vida”, relatou o jornalista. Boccanera contou que a tática leva o leitor a acreditar que a obra tem revelações “suculentas” que o personagem não tem interesse em revelar.
 
No Reino Unido, os biografados, no máximo, podem tentar processar o autor por difamação se alguma informação ofensiva não puder ser provada.
 
A posteriori
 
No debate ao vivo, Caio Túlio Costa perguntou para o deputado Molon como se deu o retrocesso na tramitação do projeto. O relator explicou que está previsto no regimento interno da Câmara que um projeto, tendo a sua apresentação conclusiva nas comissões, quando aprovado pela CCJ segue diretamente para o Senado sem passar pelo plenário da Câmara.
“Foi, de fato, um contratempo pelo qual eu lamento profundamente porque entendo que o Brasil não pode perder mais tempo. O direito à informação da sociedade brasileira se encontra prejudicado, a liberdade de expressão de pesquisadores e pensadores, também.”
Molon ponderou que agora é preciso aguardar a apreciação em plenário.
 
A pauta do plenário da Câmara, de acordo com o deputado, é sobrecarregada por projetos de lei, propostas de emenda constitucional e medidas provisórias que travam as votações. Por isso, a apresentação do recurso dificulta a sua aprovação.
“Se ele for pautado e for a voto, a minha sensação até o presente momento é de que ele passe, mas agora se inicia uma nova luta, para que o recurso contra a apreciação do projeto seja votado no plenário da Câmara, porque antes da votação do recurso em si não há o que fazer. Nós passamos a ser os interessados em ver o recurso votado. Aqueles que são contra o projeto não precisam fazer mais nada. Agora, a pressa se inverte, passa a ser nossa, de tentar fazer o recurso ser votado para derrotá-lo”, sublinhou o deputado petista.
 
Alessandro Molon ressaltou que o projeto de lei é destinado a biografias de pessoas que tenham uma dimensão pública, portanto, não é aplicável a qualquer cidadão. “Eu acho que o maior prejuízo não pode ser medido pelo número de biografias que já foram censuradas, que não podem circular. Essa á uma parte pequena do prejuízo. O maior prejuízo não pode ser contabilizado porque nós não temos como avaliar quantas biografias estão deixando de ser escritas.
Quantos autores, quantas editoras, sequer começam um projeto exatamente por saber que projeto vai esbarrar na exigência absurda e inconstitucional que existe hoje no Código Civil brasileiro, de que o biografado autorize previamente para que a obra possa se veiculada”, disse.
Para o deputado, o artigo fere dois direitos constitucionais: o dos autores, pesquisadores e historiadores de expressarem o seu ponto de vista, e o direito da sociedade brasileira à informação.
 
O deputado Molon ponderou que a visão do deputado Marcos Rogério corre o risco de restringir o caso apenas ao viés político, quando se trata na verdade de uma questão mais ampla.
“A inexigibilidade de autorização prévia para a publicação de biografias não desresponsabiliza quem quer que seja por calúnias, injúrias ou difamações”, comentou.
Por isso, a Lei das Biografias não irá retirar a responsabilidade de um autor que macular a imagem de qualquer indivíduo, inclusive de políticos: “Sempre se poderá acionar o Judiciário a posteriori, depois da publicação, para eventualmente se pedir até uma indenização”. Para o deputado, a situação atual permite que apenas obras chapa-branca sejam publicadas.
 
“Voracidade censória”
 
Caio Túlio Costa perguntou a Paulo Cesar de Andrade como o cantor Roberto Carlos conseguiu apreender parte dos exemplares e qual é a situação desse caso hoje. O historiador contou que o livro foi lançado em dezembro de 2006 e em janeiro do ano seguinte o cantor entrou com uma ação na área cível e outra na criminal alegando uso indevido da imagem e invasão de privacidade. Roberto Carlos sequer leu a biografia. Além de solicitar a proibição do livro, o cantor pedia R$ 500 mil reais a cada dia que o livro estivesse disponível para compra e a prisão do autor por um período superior a dois anos.
 
Em uma audiência de conciliação, a Editora Planeta, com receio de pagar uma alta indenização, decidiu entregar os livros para que o cantor retirasse o processo. O autor entrou com um recurso contra o acordo antes que fosse homologado e o embate continua na Justiça.
Da tiragem inicial de 60 mil livros, Roberto Carlos apreendeu os 11 mil exemplares que a editora mantinha em estoque. As obras estão guardadas em um depósito do cantor. “No dia seguinte à proibição, quase como um ato de desobediência civil, diversas cópias do livro foram para a internet”, contou o historiador.
 
Durante os quinze anos de pesquisas para o livro, Paulo Cesar tentou uma entrevista com o cantor, que negou todos os pedidos. “Quando o livro foi para a gráfica, eu disse: ‘Até agora, Roberto Carlos não me ajudou, só espero que não me atrapalhe’. E ele entrou com tudo.
O prejuízo é total. Hoje, fazem o que querem com o meu livro. Existe uma edição pirata vendida em sebos por R$ 150”, lamentou o autor. Ele ressaltou que os biógrafos não agem em desacordo com a lei vigente porque a Constituição garante a liberdade de expressão independente de censura ou licença.
 
“A voracidade censória de Roberto Carlos está passando do limite. Não foi o primeiro caso. Ele proibiu um livro de um mordomo em 1979. Esse livro foi apreendido e queimado no forno crematório da prefeitura de São Paulo.
Depois, ele entrou com um processo contra Ruy Castro por conta de uma reportagem na revista Status, em 1983. Em 1993 ele entrou com um processo contra [o extinto diário] Notícias Populares por uma série de reportagens sobre ele”, relatou Paulo Cesar.
 
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A legislação entrevada
 
Caio Túlio Costa # editorial do Observatório da Imprensa na TV n. 680, exibido em 23/4/2013
O Brasil é um país estranho. A Constituição garante a liberdade de expressão, mas muitas vezes a nossa Justiça atua de forma censória e sem respeitar a lei maior. Vamos falar hoje sobre as dezenas de biografias censuradas antes de serem publicadas. Antes dos autores exercerem seu direito de expressão. Isso está certo?
 
Um projeto de lei do Congresso Nacional, a Lei das Biografias, cujo relator está aqui conosco, o deputado Alessandro Molon, promete abolir uma brecha jurídica. Aquela que permite aos juízes cometer este crime contra a Constituição: proibir biografias se a família do biografado imaginar que o livro poderia abalar a imagem do parente. Aquele parente pessoa pública.
 
A tarefa não será fácil. A Lei das Biografias, que iria ao Senado logo logo, acaba de ser atropelada no caminho. Por conta de uma manobra no Congresso, deve ainda ser apreciada, sabe Deus quando, pelo plenário da Câmara dos Deputados antes de seguir ao Senado, conforme previsto até a semana passada.
 
Para atrapalhar tudo ainda mais, nós ficamos sabendo hoje que outro livro que fala de Roberto Carlos, uma dissertação acadêmica intitulada “Jovem Guarda: moda, música e juventude”, escrita e defendida por Maisa Zimmerman, teve pedida a interrupção de sua venda pelos advogados do rei Roberto.
 
A propósito, hoje também vamos falar com o autor da proibidíssima biografia de Roberto Carlos, o historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo. Convidamos ainda o editor Sergio Machado, da Record, que já foi presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, para nos ajudar a lançar luz neste problema que nossa democracia tem que resolver.
 
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A mídia na semana
 
>> A caçada aos autores do ataque à maratona de Boston, que matou três e feriu 176 pessoas, deixou evidente os erros do açodamento da mídia americana. Enquanto a polícia procurava os suspeitos em meio a milhares de imagens realizadas durante a maratona, a mídia se apressava em publicar fotos e nomes sem cuidado na apuração.
Com transmissão ao vivo para todo o país, canais de televisão e sites deram notícias erradas e foram obrigados a publicar desmentidos.
Os erros da imprensa levaram o FBI a soltar nota negando prisões que não ocorreram, contrariando os noticiários. o New York Post, de Rupert Murdoch, foi além ao publicar na capa uma foto de dois rapazes com o título “Homens da mochila” e uma legenda identificando os jovens como procurados pela Polícia Federal dos Estados Unidos. Na realidade, eles eram inocentes.
 
>> A onda de especulação se alastrou e ganhou força nas redes sociais, principalmente no Twitter, transformando cada leitor num detetive. No site Reddit foi criada uma seção com troca de informações para localizar os suspeitos.
Depois de 23 horas de procura e muitos erros dos veículos de informação, os dois irmãos foram capturados. Um morto e outro ferido. E a mídia ficou, definitivamente, com a credibilidade comprometida.
 
>> O El País, o mais conceituado jornal em língua hispânica da Europa, vai deixar de circular aqui. Os assinantes foram avisados que a edição sul-americana, que é vendida no Brasil e na Argentina, está sendo desativada este mês, sem justificativa.
Mais uma vez quem perde é o leitor, que deixará de ler um diário global em espanhol.
 
>> O atentado terrorista durante a maratona da cidade americana de Boston, como não podia deixar de ser, foi um dos temas mais explorados pelos chargistas de diversos jornais brasileiros. Em meio à dor das vítimas e do luto, não faltou, porém espaço para fazer um pouco de graça.

26 de abril de 2013
 Lilia Diniz

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