Ou: Fascistas de direita e de esquerda
Sugiro que vocês prestem atenção a um aspecto das declarações dos petistas e de lideranças políticas da base aliada — e até da oposição — quando se referem ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e às novas denúncias que envolvem o seu nome.
Com variações de tom ou de vocabulário, o sentido é um só: “Lula é um grande brasileiro, fez muito pelo país, é preciso respeitar a sua obra etc. e tal”. O senador José Sarney (PMDB-AP), como viram, foi além e declarou a sua inimputabilidade (afinal, Lula já havia dito que Sarney não é “um homem comum”. José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, achou que era pouco e resolveu carregar nos encômios:
“Lula é um guerreiro, um lutador. A população não vai deixar de reconhecer seu papel na história. Ele mudou a história do país. O presidente Lula tem uma trajetória reconhecida pela grande maioria da população. Foi o grande presidente da historia”.
Eu, hein… O parágrafo quase começa a salivar por conta própria… “O grande presidente da história” quer dizer exatamente o que está aí. Os outros teriam sido pequenos comparados a ele… É evidente que a matéria é, para dizer pouco, controversa, e a prudência e o senso de ridículo deveriam recomendar a Cardozo que fosse mais contido na salivação encomiástica.
Mas atenção, caros leitores! Não é nesse tipo de controvérsia que pretendo entrar, até porque seria fácil, com leitura parcial de dados, provar que Lula foi o melhor e o pior presidente que o Brasil já teve. Dois números só para ilustrar — são dados técnicos: o Brasil nunca teve tantos universitários: 6,37 milhões no fim de 2010 (é bem verdade que 14,7% estão na modalidade ensino a distância…).
Vá lá. Cresceu bastante. Mas o Brasil também nunca teve tantos universitários que não estão plenamente alfabetizados. E eu estou falando em números percentuais: eram 21% em 2001; saltaram para 34% em 2011. Isso significa 2,4 milhões daqueles 6 milhões. Em 2010, havia 2% de semianalfabetos na universidade; agora, são 4%: 255 mil estudantes.
Mas não vou entrar agora nessa história de “foi o melhor/foi o pior”. O objeto deste texto é outro. Ainda que Lula houvesse sido, de fato, o que Lula acredita ter sido; ainda que estivéssemos diante de um vulto inigualável da história por seus feitos sensacionais; ainda que fosse o nosso herói; ainda que fosse o fundador da nação brasileira…
Ainda que tudo isso, eu lhes pergunto: ele teria o direito de transgredir as leis do estado democrático? A ele deveria ser facultada a licença, por exemplo, para instalar uma “amiga” no escritório da Presidência? Evita-se a todo custo que a senhora Rosemary Noronha deponha no Congresso porque, anuncia-se, ela é considerada instável emocionalmente. Sei. Mas não para ocupar aquele posto…
Para efeitos de raciocínio, dou de barato que o Lula de verdade seja mesmo aquele que ele vê no espelho todos os dias; dou de barato que, como quer José Eduardo Cardozo, não há nada que arroste com o Gigante…
Pergunto de novo: quem está pondo em causa a obra “do estadista”? Quem está tentando minimizar os seus feitos? Eis aí uma falácia gigantesca. Dia desses, numa entrevista, até Fernando Henrique Cardoso, antes de criticar as lambanças do líder petista, resolveu reconhecer seus méritos.
O que dizer? Uma coisa não compensa outra. Uma coisa não pode existir em relação transitiva com outra. Mais ainda: uma coisa não pode perdoar a outra. Os supostos sucessos de Lula não podem e não devem servir de licença para justificar eventuais desmandos. Um país que se deixasse enredar por essa consideração estaria marchando para trás, não para a frente.
Lembrem-se de Helmut Kohl, que foi chanceler da Alemanha por, atenção!, 16 anos: de 1982 a 1998. Tem no currículo nada menos do que a unificação das duas Alemanhas, com todas as dificuldades inerentes ao processo. Foi também o grande esteio da União Europeia.
No fim de 1999, descobriu-se um esquema de caixa dois na sua legenda, a CDU (Partido Democrata-Cristão).
Ele presidia o partido havia 25 anos. Renunciou. Não ficou só nisso: a CDU cobrou que ele se desligasse da agremiação e renunciasse a seu mandato no Parlamento. O homem da unificação das duas Alemanhas e um dos principais arquitetos da UE retirou-se da vida pública.
Ah, sim: o tal caixa dois movimentou, no máximo, um milhão de euros. Como são modestos esses alemães! Só os dois peculatos ocorridos no Banco do Brasil somam mais de… 28 milhões de euros. A corrupção nos países pobres é sempre muito maior do que a do países ricos…
Não ocorreu a ninguém na Alemanha pedir “respeito à obra do chanceler Kohl”. Não ocorreu a ninguém na Alemanha chama-lo de “guerreiro”, embora ele o fosse. Não ocorreu a ninguém dizer que ele estava acima da lei por causa de sua grande obra…
É que, na Alemanha, ninguém é dono de partido. O país que passou pelo nazismo (e parte dele pelo comunismo) e que o venceu escolheu o caminho da democracia representativa.
O que quer nos dizer essa gente? Que a impunidade e a inimputabilidade devem também integrar o grande legado de Lula? O Brasil faz melhor se olhar o exemplo da Alemanha de 1999, não o da Alemanha da década de 30 do século passado.
Nossos fascistas
Poucas democracias modernas no mundo teriam, por exemplo, um Getúlio Vargas na sua galeria de heróis, frequentemente lembrado nesses dias como aquele que sofreu um terrível golpe da direita etc. e tal. Seria o antecedente histórico de Lula…
Claro, fala-se do Getúlio de 1954 (Emir Sader escreve “Getulho”…), mas não daquele entre 1937 e 1945, que prendeu, torturou, matou, mentiu, trapaceou, conspirou e flertou abertamente com o nazismo. E que mandou os comunistas para a vara. Graciliano Ramos que o diga… E o disse magnificamente em “Memórias do Cárcere”, obra de leitura obrigatória — dois volumes; aproveitem as férias.
É que as nossas cavalgaduras intelectuais veem “Getulho” como o grande guerreiro contra um inimigo que sempre lhes pareceu bem mais perigoso do que o nazismo: Uzestadozunidos!!!!
Getúlio permitiu que a judia Olga Benário fosse extraditada, grávida, para a Alemanha (petistas, agora, deram para comparar Dirceu a Olga; há certa diferença de coragem…). Fora da cadeia, ainda combalido pelas torturas, Luiz Carlos Prestes subiu no mesmo palanque do seu algoz e do algoz de sua mulher contra o inimigo comum: o imperialismo — ou, dito de outro modo, a democracia! E certa canalhice intelectual louvou em Prestes a sua objetividade…
Sim, no fim das contas é isto: os que defendemos a democracia temos sempre de enfrentar a aliança objetiva entre os fascistas de direita e os fascistas de esquerda.
13 de dezembro de 2012
Reinaldo Azevedo
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