É necessário um ajuste de verdade, distante da contabilidade criativa e do corte de gastos inexistentes
Em 2011 a revista "The Economist" publicou uma longa reportagem sobre a Austrália. Nela Glenn Stevens, presidente do banco central australiano, resumia magistralmente o momento econômico do país: "Há cinco anos [2006] uma carga de minério de ferro comprava 2.200 TVs de tela plana (...); hoje [2011] compra 22 mil".
Muito embora a reportagem tratasse da Austrália, quem trocasse o nome do país para "Brasil" não teria dificuldades para reconhecer o que vinha acontecendo.
De fato, até 2006 conseguíamos em troca do "minério" uma quantidade de "TVs" não muito distinta da obtida em média nos 38 anos anteriores. As coisas, porém, mudaram: cada unidade exportada pelo Brasil pôde ser trocada por uma quantidade muito maior de importações, aumentando a disponibilidade interna de bens.
Na prática, isso permitiu que a demanda interna crescesse a uma velocidade muito superior à do PIB (Produto Interno Bruto) sem grandes danos ao balanço de pa- gamentos.
Assim, entre 2006 e 2011, a demanda interna se expandiu a pouco mais de 5% ao ano, enquanto o PIB crescia em torno de 4% ao ano; já nos cinco anos anteriores PIB e demanda interna cresciam ambos em torno de 3% ao ano.
Em condições normais, a diferença entre demanda interna e PIB provocaria um rombo formidável nas contas externas, mas a conjuntura que prevalecia no período era tudo, menos normal.
Concretamente, em 2011 a balança comercial brasileira registrou um superavit de quase US$ 30 bilhões; tivesse o país exportado e importado as mesmas quantidades observadas naquele ano, mas a preços de exportação e importação em torno de sua média histórica (nossa definição de "condições normais"), a balança comercial teria registrado um deficit de US$ 46 bilhões.
A situação excepcional a que Stevens se referia nos trouxe, portanto, um ganho próximo a US$ 76 bilhões em 2011, equivalente a pouco mais de 3% do PIB naquele ano.
Desde então as circunstâncias se tornaram menos excepcionais. Os preços ainda estão, numa perspectiva de longo prazo, favoráveis ao Brasil, mas houve uma piora nítida de 2011 para cá.
Nos últimos 12 meses (até maio), a balança registrou um superavit de US$ 8 bilhões; tivessem, porém, prevalecido os preços do terceiro trimestre de 2011, o saldo teria sido de US$ 28 bilhões, uma perda de US$ 20 bilhões (aproximadamente 1% do PIB).
Posto de outra forma, sem os ganhos extraordinários do período 2006-11, ficou muito mais difícil sustentar um modelo de crescimento baseado na expansão da demanda interna, em particular do consumo.
O rápido encolhimento do saldo comercial, em larga medida originado da piora dos preços dos produtos exportados relativamente aos importados, acena com a possibilidade de um deficit externo da ordem de US$ 75 bilhões a US$ 80 bilhões (3,5% do PIB) já em 2013.
Há, portanto, uma queda significativa da capacidade para importar a preços reduzidos precisamente quando a capacidade de reação da oferta doméstica se encontra limitada pelas condições do mercado de trabalho e baixo crescimento da produtividade.
Nesse contexto, políticas de incentivo à demanda se traduzem apenas em pressões adicionais sobre preços e importações (no caso, mais caras), com escasso impacto sobre o PIB.
A solução, como há muito insisto, passa por um ajuste fiscal de verdade, distante da contabilidade criativa e do corte de gastos inexistentes em que o governo se especializou, seja por seus objetivos políticos, seja pela dificuldade de entendimento já demonstrada acerca da natureza dos nossos problemas.
Os anúncios recentes no campo fiscal, em particular novas antecipações de dividendos por parte de bancos públicos com dinheiro emprestado pelo próprio Tesouro (financiado por endividamento!), deixam claro que não há risco de adoção de uma estratégia correta para lidar com inflação alta, deficit externo crescente e PIB medíocre.
Com base em ilusões fiscais, não há como esperar um cenário diferente no futuro próximo.
10 de julho de 2013
Alexandre Schwartsman, Folha de São Paulo
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