- Quanto mais reflito, e quanto mais tempo sou editor, mais me convenço de que jornalista não precisa de diploma de jornalista, mas sim de uma boa e sólida formação que começa em casa, passa pela escola básica, e pode até chegar à universidade. Um jornalista precisa de escolas, sim — escolas sem rótulos, que ensinem história, literatura, economia, ciência, filosofia, direito… o universo! Um jornalista precisa aprender a pensar, analisar, questionar, usar a cabeça. Um jornalista precisa ler muitos livros, precisa ser curioso, querer saber sempre o porquê das coisas, todas as coisas. E precisa gostar de contar o que descobre, de contar histórias…
Depoimento de Roberto Civita, criador da Veja e de outras revistas do grupo Abril, que morreu ontem, reproduzido em uma entrevista sua, publicada em 2008, que na verdade é um apanhado de excertos de entrevistas outras dadas ao longo de sua vida. São reflexões de um homem que fez jornalismo por mais de meio século e foi um dos grandes responsáveis pela formatação da opinião nacional. Ao texto citado, nenhuma vírgula a acrescentar. Disse tudo que pode ser dito sobre a definição do que é ser jornalista.
Já uma outra resposta sua comporta uma série de perguntas.
- Quando o senhor sabe que uma publicação está no caminho certo?
- Existem muitas variáveis, mas a infalível é quando os jornalistas de uma revista acreditam que o leitor é o seu verdadeiro patrão. Quando eles trabalham unicamente para atender às necessidades desses leitores, por meio de um jornalismo sério, bem pautado, bem apurado, bem escrito, bem editado — resultando em revistas honestas, bonitas, úteis e surpreendentes.
Neste país inculto e dominado pela televisão, me parece no mínimo arriscado para um jornalista considerar o leitor seu verdadeiro patrão. Para começar, eu diria que boa parte dos leitores de Veja são os petistas, em função das denúncias feitas pela revista sobre as corrupções do PT. Tanto que houve até mesmo um animal que festejou a morte de Civita. Ser patrão da Veja é o sonho de todo petista, não por acaso há horas o partido vem lutando para impor uma censura nacional à imprensa. Ora, ter o PT como patrão é o mesmo que calar todo pensamento contrário ao arbítrio, toda denúncia de corrupção. É sepultar qualquer crítica ao governo e aceitar a ditadura de um partido único.
Por outro lado, leitor não é sinônimo de pessoa inteligente. Uma revista ou jornal inteligente tem muitos leitores burros. A Veja, talvez mais que qualquer órgão da imprensa nacional, sabe disso. E faz acenos a este leitor burro. Sem ir mais longe, as páginas de crítica cinematográfica. Invariavelmente, comentam os blockbusters, os filmes que lotam milhares de salas, e que de arte pouco ou nada têm. São apenas divertissements endereçados a um público embotado pelo atual cinema americano. Leio a Veja todas as semanas e não tenho lembrança de ter visto um filme bom comentado. Abacaxis como Avatar, Batman, Homem de Ferro mereceram longos artigos da revista, que neste momento teve como patrão o espectador embrutecido pelo péssimo cinema.
O mesmo diga-se dos best-sellers. Em setembro passado, a revista dava a capa e mais nada menos que treze páginas a um livro vagabundo, de autoria da britânica E. L. James, intitulado Cinqüenta tons de cinza. Que é o primeiro de uma trilogia girando em torno ao sexo sadomasoquista. Segundo os jornais, vendeu mais que pão quente. Neste momento, o patrão de Veja foi o leitor inculto de best-sellers.
Que a Veja divulgue lixo quando fala de artes, isto virou rotina. Há muito a revista não sugere a seus leitores livro ou filme que preste. Seus redatores preferem comentar o que está vendendo bem. E o que está vendendo bem, quando se fala em cinema ou literatura, normalmente não presta.
É deplorável que Veja – que goza a fama de ser o único partido de oposição no Brasil – na hora de comentar literatura dedique capa e trezes páginas a uma autora de uma mediocridade atroz.
Segundo a revista, em seis semanas mulheres do mundo inteiro devoraram 10 milhões de cópias. 99,9% dos compradores do livro são do sexo feminino. Por ocasião da reportagem, o primeiro volume da trilogia já vendera no Brasil, desde julho, 340 mil exemplares e estava há sete semanas consecutivas na lista dos mais vendidos. Neste momento, o patrão da revista foi a mediocridade dos compradores do livro. Claro que tal fenômeno editorial merece uma reportagem. Mas precisava dar capa e treze páginas?
Pessoalmente, vejo o jornalismo como um ofício não apenas informativo, mas também pedagógico. Cabe ao jornalista transmitir ao leitor mesmo coisas que ele prefere ignorar. Para educá-lo. O jornalista tem de ousar remar contra a correnteza. Isto é: contra o leitor, se for o caso. Bom jornalista é o que não se rende às modas em matéria de pensamento.
Neste sentido, a imprensa toda do século passado foi falha. Durante décadas, constituiu heresia dizer qualquer coisa contra o comunismo. O próprio mundo editorial se absteve de publicar denúncias vitais, porque os jornalistas sabotariam as editoras. Sem ir mais longe: O Homem Revoltado, de Camus, publicado em 1951 na França, só foi editado no Brasil em 1996, sete anos após a queda do Muro, cinco anos após o desmoronamento da União Soviética. Nessa altura, o livro não passava de uma curiosidade histórica.
Foi esta censura – exercida pelo leitor-patrão do século passado – que fez com que o leitor brasileiro, durante décadas, ignorasse os crimes do stalinismo. Que só foram conhecidos entre nós a partir das denúncias de Kruschov, em 56, no XX Congresso do PCUS, apesar de terem sido denunciados desde a década dos 30. Este silêncio durante gerações possibilitou a chegada do PT ao poder. Se alguém ainda tem memória, o PT em sua infância portava bandeiras socialistas. E a universidade brasileira, que deveria ser vanguarda do pensamento, ainda hoje abriga e nutre o pensamento marxista.
Não me parece que o leitor seja o melhor patrão de um jornal. Patrão deve ser aquele jornalista sem diploma, tão bem definido por Civita. Patrão deve ser quem conhece os fatos, quem investiga e tem capacidade analítica. Se o leitor os conhecesse, não precisaria informar-se em jornais. Informa quem conhece. Quem não conhece, lê para informar-se.
Se leitor fosse patrão, o jornalismo nacional não teria nem mesmo a Veja. Que, apesar dos pesares, tem constituído uma das poucas defesas do cidadão ante a corrupção e arbítrio do governo.
28 de maio de 2013
janer cristaldo
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