"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 6 de junho de 2013

"A HORA E A VEZ DE GRETA CELESTE"

 
Em cartaz desde o terceiro fim de semana de maio, ‘Frances Ha’ é um fenômeno de bilheteria entre os independentes e uma quase unanimidade entre os críticos
 
“Nós somos algo assim como duas lésbicas que não fazem mais sexo.” A frase-síntese de “Frances Ha”, o filme desta primavera em Nova York, é dita pela Frances de Greta Gerwig à sua outra metade, a melhor amiga Sophie, vivida por Mickey Sumner. Mas é, também, um recado-desabafo à cidade querida. Em cartaz desde o terceiro fim de semana de maio, é um fenômeno de bilheteria entre os independentes e uma quase unanimidade entre os críticos, com a marca de 90% de aprovação nos principais sites agregadores de resenhas na internet.
 
Conhecido do público brasileiro pelo ótimo “A lula e a baleia”, em torno da separação do casal formado por Jeff Daniels e Laura Linney no Brooklyn pré-gentrificação, Noah Baumbach escreveu o roteiro a quatro mãos com Gerwig. A atriz é a companheira do nova-iorquino desde sua separação de Jennifer Jason Leigh, por ele dirigida tanto em “Greenberg” quanto em “Margot e o casamento”, seus dois longas anteriores.

“Frances Ha” — a segunda parte do título só é revelada ao fim da história — gira em torno de uma professora de dança moderna aparentemente medíocre às voltas com as dificuldades da vida adulta em uma cidade tão excitante quanto disneyficada e irremediavelmente dura, cujos prazeres cada vez mais seguem restritos aos chamados vencedores.
 
Não por acaso Frances, como Greta, está à beira de completar sua terceira década de vida. Sua interpretação naturalista rendeu um elogio musculoso de John Anderson no “Wall Street Journal”: “Talvez Gerwig seja a maior atriz viva do cinema contemporâneo”.
 
Talvez. “Frances Ha” não é um filme perfeito, e Gerwig, outrora musa do mumblecore, o mais hipster dos subgêneros do cinema independente americano, tem achado graça de tanto barulho por 1h26m de projeção. Conversei com a loura simpática, de sorriso misterioso e andar desengonçado, durante os encontros com a imprensa motivados pela comédia “Descobrindo o amor”, de Whit Stillman, lançada no Brasil em DVD no ano passado.
 
A atriz contou que havia pedido a Stillman um papel secundário, mas o diretor a convenceu a encarar o principal depois de uma bateria de testes que incluía uma tarde de prática de ritmos de dança de salão. “Para ser bem honesto, eu queria mesmo era vê-la tap-dancing”, diz Stillman, a cara mais séria do planeta.

O diretor de “Os últimos embalos da Disco” é apenas mais um na lista de fãs de Greta Celeste. Sim, este é o nome de batismo da atriz, que diz, sem muitas firulas, como vê seu ofício: “Busco sempre a mesma coisa em meus personagens — inspiração para a vida real.
 
E só. Não me interessa entrar na cabeça de uma criatura, daquele ser imaginário, se ele não for estranho, contraditório e repleto de humanidade”. Sua Frances transpira vulnerabilidade, delicadeza e é dona de um enorme coração, que, no entanto, não a impede de sentir inveja da melhor amiga, transformada em Cinderela, casada com um sujeito rico subitamente transferido para Tóquio.
 
O outro lado do espelho de Frances, a Sophie de Mickey Sumner (filha do cantor Sting) é a versão adulta da menina que acaba retornando, em tempos de recessão e desemprego na sociedade mais rica do planeta, para sua velha universidade, a fim de se reencontrar.
 
Greta Celeste e sua “Frances Ha” são um retrato originalíssimo da Nova York dos anos Bloomberg, e a comparação com outras obras audiovisuais carece de exatidão. Os menos inventivos se apressam em aproximar o filme da série televisiva “Girls”, da HBO, passada no mesmo Brooklyn onde encontramos, inicialmente, Frances e Sophie.

Neste caso, o elo mais óbvio é o ótimo Adam Driver, namorado da personagem de Lena Dunham na televisão e agora um hipster de fachada no cinema. Mas Frances, ao contrário da Hannah de Dunham, interage com o universo ao redor para além das possibilidades sexuais.
 
A outra comparação é com “Manhattan”, o clássico em preto e branco de Woody Allen, com quem Greta Celeste trabalhou em “Para Roma com amor”. Baumbach é fã declarado de Allen e frequentou a mesma escola secundária, no Brooklyn, de seu mestre.
 
Mas, como pontua o crítico do “Journal”, “Frances Ha” é honesta com NYC de um modo que Allen jamais precisou ser. Não há necessidade de estilização alguma para apresentar o “parque de diversões de jovens herdeiros que transformaram a boemia em uma declaração de intenções essencialmente cara e regida pela moda”.
 
Alguém como Frances, uma operária da dança, sem um apartamento próprio, que vive à maré dos acontecimentos por necessidade e não por prazer, como a maioria de seus amigos, é, vaticina o crítico, uma espécie ameaçada na Nova York contemporânea. Eleger Greta Celeste atriz-fetiche da temporada é o primeiro ato de rebeldia contra a extinção das Frances nova-iorquinas. Apesar de ter na produção o paulista Rodrigo Teixeira, de “O cheiro do ralo”, “Frances Ha”, infelizmente, não tem previsão de lançamento nos cinemas brasileiros.

06 de junho de 2013
Eduardo Graça. O Globo

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